quarta-feira, 31 de outubro de 2007

Plataforma do conhecimento

Em 40 anos, a Bireme cumpriu a trajetória de biblioteca médica à referência em gestão da informação científica

Fabrício Marques

O Centro Latino-americano e do Caribe de Informação em Ciências da Saúde (Bireme) vem sendo convocado a emprestar a sua experiência na gestão e na oferta de conhecimento científico a uma série de novas iniciativas. Em 2006 a Organização Mundial da Saúde (OMS) delegou ao centro a tarefa de desenvolver a plataforma tecnológica da Global Health Library (GHL), uma biblioteca mundial com fontes de informação em saúde. A Bireme também envolveu-se na administração e na operação do TropIKA – Tropical Disease Research to Foster Innovation & Knowledge Application, portal interativo na área de doenças infecciosas e parasitárias, em parceria com o programa Tropical Diseases Research da OMS, que tem apoio de instituições como o Unicef e o Banco Mundial. E foi convidada a fornecer cooperação técnica para a criação da Rede ePORTUGUÊSe – Rede de Fontes de Informação e Conhecimento em Saúde para os Países de Língua Portuguesa –, liderada pela OMS, que tem como uma das suas principais linhas de ação adotar e implantar a Biblioteca Virtual em Saúde nos países de língua portuguesa.

Hoje estão ligadas à Bireme grandes redes cooperativas de informação que apóiam a pesquisa e a inovação no continente, como a Scientific Electronic Library Online (SciELO), a Biblioteca Virtual em Saúde (BVS) ou a Rede Internacional de Fontes de Informação e Conhecimento para a Gestão de Ciência, Tecnologia e Inovação (ScienTI).

A SciELO, construída há dez anos em parceria com a FAPESP e o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), oferece em regime de acesso aberto na internet mais de 130 mil artigos de 452 títulos de periódicos certificados e deve alcançar a marca de 10 milhões de acessos mensais até o fim do ano. Atualmente a SciELO abriga dez coleções em oito países – Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, Cuba, Portugal, Espanha e Venezuela –, além de duas coleções temáticas nas áreas de saúde pública e ciências sociais. Bases de dados para coleções de Costa Rica, México, Paraguai, Peru e Uruguai estão em fase de desenvolvimento.

Já a Rede ScienTI, originada a partir da Plataforma Lattes do CNPq, é formada pelos conselhos nacionais de Ciência e Tecnologia da América Latina que disponibilizam em diretórios nacionais os currículos dos pesquisadores e dados sobre os grupos de pesquisa. Com interfaces nas línguas espanhola, inglesa e portuguesa, a BVS é desenvolvida conjuntamente com os países da América Latina, Caribe, Portugal e Espanha e opera on-line mais de 15 milhões de registros de metadados (dados sobre origem, fluxo ou formatos de bibliografias), vinculados a bases de literatura internacional de ciências da saúde como a latino-americana Lilacs, as norte-americanas Medline e Biblioteca Cochrane, além da SciELO.


“A Bireme é essencial para o progresso da gestão da informação e do conhecimento científico no Brasil, na América Latina e no Caribe e também na cooperação internacional, particularmente na cooperação sul-sul”, diz Diego Victoria, representante da Organização Pan-americana de Saúde (Opas) no Brasil. Além de organizar e gerenciar esse volume de informação, a Bireme há tempos assumiu a tarefa de estabelecer normas na América Latina e no Caribe sobre a estrutura de registros e de textos, para garantir que suas bases de dados consigam operar em nível global. “Como exemplo recente disso, a Bireme comunicou neste ano a todos os editores científicos que a aprovação de manuscritos de ensaios clínicos pelas revistas indexadas nas bases Lilacs e SciELO deverá exigir o número de registro do ensaio, de acordo com as normas da OMS”, explica o diretor da Bireme, Abel Packer.

Não deixa de ser curioso que o centro, hoje um instrumento de afirmação da ciência latino-americana, tenha nascido sob forte influência norte-americana. Em meados do século XX, a OMS lançou a idéia de espalhar bibliotecas médicas em cada região do planeta. Mas apenas a Opas levou o conceito adiante, inspirando-se no modelo em vigor nos Estados Unidos, calcado em bibliotecas regionais vinculadas a uma biblioteca nacional. “A Bireme conseguiu ir muito além do conceito inicial para se tornar um modelo de inovação e colaboração”, disse a diretora-geral da OMS, Margaret Chan, em pronunciamento sobre os 40 anos da Bireme.

Sem paredes - O artigo “Uma biblioteca sem paredes: história da criação da Bireme”, publicado em 2006 na revista História, Ciências, Saúde-Manguinhos, cujo autor principal é a historiadora Márcia Regina Barros da Silva, recupera essa trajetória. Em abril de 1965 dois bibliotecários norte-americanos foram contratados como consultores pela Opas, sediada em Washington, para selecionar o país onde seria instalada a biblioteca regional. A opção pelo Brasil deveu-se, de um lado, à ativa participação de pesquisadores do país na Opas e nos debates sobre a implantação da biblioteca.

Definido o país, a escolha recairia sobre a Escola Paulista de Medicina (EPM), hoje Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), na capital paulista. Pesaram a favor da escola o intenso lobby feito junto à Opas pelos professores da EPM Magid Iunes e Antônio de Mattos Paiva. Outro fator importante foi a nova configuração da escola, que passara à alçada do governo federal – condição essencial para garantir o engajamento do poder público no projeto.

A criação da Bireme, diga-se, estava mais do que justificada. Quase a metade dos pedidos de artigos científicos à Biblioteca Nacional de Medicina dos Estados Unidos (NLM, na sigla em inglês) no final dos anos 1960 provinha de países latino-americanos. Em 1972 a Bireme entraria no mundo da informação eletrônica, com a instalação de um terminal Olivetti operando através do satélite Intersalt com a NLM pelo sistema Medline. Em 1985 a Bireme tornou-se a primeira biblioteca a criar bases de dados em CD-ROM, antecipando uma tendência de armazenamento de informação que se consagraria. O final dos anos 1980 foi marcado pela operação on-line das bases de dados, com a adoção da internet nos anos 1990 com interfaces de pesquisa em espanhol, inglês e português.

O lançamento do projeto SciELO, em 1997, da Rede ScienTI, em 2000, e da Biblioteca Cochrane com acesso aberto a toda a América Latina, em 2004, completa os grandes marcos. “Entre os novos desafios da Bireme destaco a necessidade de contribuir para a tradução do conhecimento científico em políticas e a criação de incentivos para que os tomadores de decisão acessem de forma mais sistemática o acervo de conhecimentos”, disse Reinaldo Guimarães, secretário de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos do Ministério da Saúde.

Financiada com recursos da Opas, dos ministérios da Saúde e da Educação, da Secretaria da Saúde de São Paulo e da Unifesp e de projetos como do SciELO, a Bireme manteve nestes 40 anos o seu caráter de centro internacional vinculada formalmente à Opas/OMS, mantendo-se distante de ingerências políticas e intempéries orçamentárias. “Por outro lado, ao operar em estreita colaboração com instituições brasileiras, o Brasil propiciou à Bireme e suas redes internacionais a massa crítica que favorece a sua sustentabilidade”, diz Abel Packer.


Fonte: Revista Fapesp - Edição Impressa Outubro 2007

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