terça-feira, 5 de janeiro de 2010
Pergaminhos e terabytes
Com arquivo repleto de tesouros e uma imensidão de documentos digitalizados, Biblioteca Nacional completa 200 anos
Eduardo Fradkin
A primeira Bíblia impressa da História foi produzida por Johannes Gutenberg, em 1455. É o marco inicial do uso de tipos móveis na impressão de documentos, processo que revolucionou o mercado gráfico, permitiu a confecção de livros em grande escala e deu origem à imprensa. A Bíblia de Gutenberg não faz parte do acervo da Biblioteca Nacional do Brasil, sediada na Cinelândia, mas outra da mesma época, feita por dois ex-sócios de Gutenberg, está lá, em dois volumes.
É um dos muitos tesouros dessa instituição, que festeja seu bicentenário em 29 de outubro deste ano.
Naquela data, em 1810, um decreto do Príncipe Regente determinou que, nas catacumbas do Hospital do Convento da Ordem Terceira do Carmo, na atual Rua Primeiro de Março, fosse construída a Real Biblioteca. O seu acervo, de 60 mil itens (entre livros, gravuras, mapas, moedas e outros objetos), começara a chegar ao Brasil alguns meses antes, sendo acomodado em salas do hospital. Na correria da fuga da família real de Portugal, em 1807, esse material acabara ficando para trás, esquecido no porto.
Um daqueles itens é a Bíblia de Mogúncia, cujo colofão (ficha bibliográfica de antigamente) traz os nomes de Johann Fust e Peter Schöffer, ex-credores de Gutenberg que se apossaram de sua oficina. A chefe do setor de obras raras da biblioteca, Ana Virgínia Pinheiro, veste luvas para manusear a obra, em bom estado.
- Temos dois exemplares da Bíblia de Mogúncia. Reza a lenda que uma UNIVERSIDADE americana propôs construir um prédio novo para a Biblioteca Nacional em qualquer lugar que a sua direção escolhesse, em troca dessa Bíblia. Ela foi impressa em pergaminho de pele de ovelha, em 1462. É um monumento da tipografia, considerado uma obra de arte. Já vi pesquisador chorar ao ver essa Bíblia na sua frente. Há apenas 65 exemplares dela espalhados pelo mundo, em posse de colecionadores ou de museus - explica Ana, que chefia o setor desde 2004, mas já trabalha na biblioteca há 28 anos.
Obras proibidas pela Inquisição
Os artigos de idade mais avançada guardados ali, contudo, são outros, também de cunho religioso.
- Nossos documentos mais antigos são quatro Evangelhos manuscritos em grego do século XI. São os mais antigos documentos existentes na América Latina - esclarece Ana, que conhece bem as preciosidades sob sua guarda. - Temos exemplares de obras que foram censuradas e destruídas pela Inquisição, mas que pertenciam à biblioteca particular da família real. Ela incluía livros que tinham sido proibidos até mesmo pelo seu próprio dono, o Rei D. José I.
A explicação para a aparente contradição é simples, segundo a coordenadora de Informação Bibliográfica da biblioteca, Angela Monteiro: - Num terremoto que causou grandes estragos em Lisboa em 1755, a biblioteca real foi queimada por um incêndio. Então, o Rei D. José I resolveu refazer a coleção. Mandou emissários a países estrangeiros com a missão de trazer livros valiosos, e muita coisa também foi adquirida pelo confisco de coleções de jesuítas e com grandes doações. Não havia como controlar tudo o que chegava.
A coleção refeita por D. José I começou a ser trazida para o Brasil em 1810, dois anos após a chegada de sua filha, a Rainha D. Maria I, e do Príncipe Regente, D. João. A Real Biblioteca, com seus 60 mil itens iniciais, não parou de crescer. Das catacumbas do hospital foi para a Rua do Passeio, onde hoje está a Escola de Música da UFRJ, e de lá para o atual endereço, em 1910. Ou seja, o prédio da Cinelândia celebra seu centenário este ano. O acervo tampouco deixou de ser ampliado. Hoje, está estimado em nove milhões de itens. É a oitava maior biblioteca nacional do mundo, segundo a Unesco. Desde 1907, por lei, todo livro, revista ou jornal publicado no Brasil deve ter um exemplar enviado à Biblioteca Nacional.
- Há vários livros que foram destruídos na época da ditadura, mas tiveram uma cópia preservada aqui.
Um dos mais interessantes é "O mundo da paz", de Jorge Amado, publicado em 1951. Por causa desse livro, que fala de países socialistas, ele foi enquadrado na lei de segurança.
É um livro que se tornou raro e pouco conhecido, mesmo por quem coleciona as obras dele - conta Ana Virgínia Pinheiro. - Na época da ditadura, os jornais comunistas do nosso acervo eram escondidos no porão. Pelas más condições que havia ali, muitos se perderam.
Exposições para o bicentenário
A biblioteca tem o que chama de "cemitério". Lá jazem livros que não podem ser consultados pois precisam de restauração urgente.
Em janeiro de 2009, a biblioteca deu partida no Projeto Fênix, patrocinado pelo BNDES, para recuperar essas relíquias. Foi liberada uma verba de R$ 375 mil, e a meta era salvar 130 livros.
- Passamos da metade dessa meta. Esperamos que o projeto continue, pois ainda há muito a ser restaurado. Em nosso cemitério, temos muito mais que dez vezes esse número de livros à espera de restauro - calcula Ana. - O primeiro livro salvo pelo projeto foi "Divina proporção" (1509), de Luca Pacioli, ilustrado com xilogravuras de Leonardo Da Vinci (que era amigo do autor).
- Os livros atendidos pelo Projeto Fênix são muito antigos, impressos em papel de trapo e sem encadernação original. Aqui, eles são tratados e encadernados em pergaminho. São livros do século XV ao XVII, degradados principalmente pela ação de insetos - diz o coordenador de Preservação, Jayme Spinelli.
Na sala de restauração trabalham 13 funcionários, de segunda a sextafeira, das 9h às 18h. Três deles foram contratados graças ao BNDES.
É feito também um trabalho constante de higienização do acervo antigo, para evitar que o "cemitério" receba novos cadáveres. Entre as obras mais bem guardadas e cuidadas da biblioteca está, por exemplo, a primeira edição de "Os lusíadas".
A importância da Biblioteca Nacional do Brasil é reconhecida em todo o mundo. Em abril do ano que acabou, a Unesco inaugurou a World Digital Library, um banco de dados mundial. A instituição brasileira foi membro fundador. Por isso, o site tem as seis línguas oficiais da Unesco e o português. A Biblioteca Nacional lançara sua versão virtual em 2006 e já vinha digitalizando documentos desde 2003.
- A gente não digitaliza apenas para dar acesso à informação. Isso seria fácil de se fazer, pois não exigiria uma resolução altíssima. Digitalizamos como uma forma de preservação dos documentos em seus mínimos detalhes, pois nunca se pode descartar o risco de roubo ou danificação.
Estamos procurando um patrocinador para instalar um data center aqui. Temos dez terabytes (um terabyte equivale a um milhão de megabytes) de arquivo digital. Atualmente, precisamos retirar os hard disks das máquinas e armazená-los numa salacofre - conta Angela Monteiro, anunciando em seguida que, neste ano de aniversário, serão feitas exposições virtuais no site e outras, não virtuais, itinerantes pelo Brasil.
Fonte: O Globo
via Linear Clipping
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