domingo, 28 de fevereiro de 2010

Bibliotecas na Internet

Isolado em sua ilha, Robinson Crusoé teria leitura garantida por 30 anos com uma Bíblia de Gutenberg à disposição. Se a obra, no entanto, tivesse sido digitalizada, esse tempo seria reduzido às poucas horas de duração da bateria de seu e-book. Atire um livro do quinto andar de um prédio e, depois da queda, você o terá de volta mais ou menos inteiro. Experimente repetir a experiência com um e-book. Mais um exemplo? Hoje, é possível ler um texto impresso de 500 anos, mas quem garante que o livro eletrônico resistirá a quatro ou cinco anos de existência? As provocativas comparações acima são do escritor e pensador italiano Umberto Eco, para quem o livro é similar a roda, colher, martelo, tesoura ou óculos, que, uma vez inventados, receberam raras melhorias ao longo dos séculos.

O autor do best seller O nome da rosa não é contra as inovações tecnológicas, ao contrário, acredita que o livro eletrônico trará benefícios em diferentes domínios. Um magistrado poderá mais facilmente levar para casa as 25 mil peças de um processo digitalizadas em seu e-book, por exemplo. Será o fim das enciclopédias de 40 volumes, que necessitavam de um cômodo a mais nos lares. As crianças não mais sofrerão de escoliose por causa do peso dos manuais escolares em suas costas, pois terão Molière e a gramática em seus Kindles e similares. Mas, para Eco, nada substituirá o amor pelo objeto livro. “Eu continuo simplesmente a me perguntar se, mesmo com a tecnologia mais adaptada às exigências da leitura, será oportuno ler Guerra e paz (de Liev Tolstói) num e-book”, diz no livro de conversas com o escritor, dramaturgo e roteirista francês Jean-Claude Carrière, Não espere se livrar dos livros (editora Gasset), lançado no final do ano passado.

Para Umberto Eco, a internet não significou uma introdução na civilização das imagens, mas um retorno à era alfabética. “O computador nos reintroduziu na galáxia de Gutenberg e, a partir de agora, todo o mundo se vê obrigado a ler”, conclui. Para ler, é necessário suporte, que não pode ser exclusivamente o computador. “Passe duas horas diante de um computador lendo um romance e seus olhos se tornarão como duas bolas de tênis. Eu tenho em casa óculos Polaroid que protegem meus olhos da leitura contínua na tela”, conta. Dependente da eletricidade, o e-book tem o seu uso dificultado numa banheira e, devido a sua inflexibilidade, na leitura na cama, deitado de lado, argumenta o exigente escritor. “Talvez o livro evolua em seus componentes, talvez suas páginas não sejam mais de papel, mas ele permanecerá tal qual é”, sustenta.
Acordo com o Google
As questões surgidas com o rápido e recente avanço do livro eletrônico vieram acompanhadas de outro debate, mais polêmico e, também, político: a digitalização das bibliotecas. Na origem, está o ambicioso projeto do site de buscas Google de criar uma biblioteca virtual universal, que ganhou adeptos, mas também provocou reações adversas pelo mundo.
Um “registro de direitos autorais” será criado para distribuir esses dividendos. Os chamados “livros órfãos”, de detentores de direitos autorais desconhecidos, serão administrados por um organismo independente. O acordo aguarda ainda a aprovação da justiça americana, que deverá se pronunciar neste mês de fevereiro.
Na Europa, a investida do gigante americano seduziu alguns – acordos foram estabelecidos com sete bibliotecas do continente – e alertou a desconfiança de outros. Em 2008, a biblioteca municipal da cidade de Lyon, a segunda maior do país, assinou um contrato com o Google para a digitalização de 500 mil obras de domínio público.
A custo zero para a biblioteca, as obras estão sendo digitalizadas em um local mantido secreto, a 50 quilômetros da cidade, num ritmo de 2 mil livros por semana. Pelo acordo, o site de buscas se reserva o direito de exploração das obras e de outros delas derivados. O contrato, assinado com cláusula de garantia de sigilo e de exclusividade por um período de 25 anos, teve o acesso liberado pela justiça francesa, que considerou ilegal uma empresa se associar em regime de segredo com uma administração pública.
Jean-Yves Mollier, historiador do livro e da leitura, professor da Universidade Versailles, autor de Para onde vai o livro (ed. La Dispute), vê nessa iniciativa uma ameaça à biblioteca como patrimônio mundial da humanidade. Segundo ele, o perigo está no fato de um site privado obter o controle de exploração das obras. “É algo escandaloso. Trata-se de uma empresa privada que deve remunerar seus acionistas, não faço algum julgamento negativo em relação a isso, mas seu objetivo final é o lucro, e não colocar à disposição do público a biblioteca universal”, diz à Revista da Cultura, em meio às estantes da biblioteca de seu apartamento, nos arredores de Paris.
Para o historiador, o Google jamais teria se lançado nessa aventura se a Biblioteca Nacional da França (BNF), inaugurada em 1998, tivesse cumprido sua meta de digitalizar 1 milhão de livros. Por razões orçamentárias, a digitalização inicial não passou de 70 mil objetos impressos. “O Google teve a inteligência de ver que lá onde o Estado fracassou, um site de buscas poderia fazer o trabalho. Mas é de responsabilidade dos Estados digitalizar seu patrimônio e disponibilizá-lo ao mundo inteiro”, defende.
Segundo ele, o acordo estabelecido nos Estados Unidos também é um erro. Os americanos, em sua opinião, deveriam seguir a proposição de Robert Darnton, historiador dos livros e diretor da Biblioteca da Universidade Harvard: o governo deveria reembolsar o Google por toda a digitalização já feita e se encarregar da administração das bibliotecas virtuais.
Os livros americanos digitalizados, que se tornariam propriedade do Estado, seriam, então, interconectados com outras bibliotecas universais, como a Gallica (BNF), a da Universidade do Québec e equivalentes em demais países. Mas, em vez de um site estatal ou interestatal, Mollier é favorável a um site de buscas por família de línguas: “A língua portuguesa não pertence ao Brasil ou aos habitantes de Macau, a um país ou a uma instituição, mas a todos aqueles que falam o português, morem eles em Paris ou em Pequim. O ideal seria criar um site de buscas lusófono, hispanófono, germanófono, arabófono, e assim por diante, e interconectá-los”. A Unesco, segundo ele, seria o agente lógico desse processo, mas tem contra si a sua lenta burocracia. “A Unesco já começou a pensar nisso. Há um projeto de biblioteca digital universal, mas, devido a sua pesada máquina administrativa, é algo que deverá levar algum tempo para avançar”, diz, pessimista.
Digitais e universais
Os europeus decidiram frear as pretensões do Google e estabelecer suas próprias regras para a criação das bibliotecas digitais, sem descartar, no entanto, uma eventual colaboração com o site americano e outros possíveis parceiros. “A digitalização de livros é uma tarefa colossal, que deve ser pilotada pelo setor público, mas para a qual o apoio do setor privado é necessário”, disse a Comissão Europeia em um comunicado. No mês passado, a comissão de sábios formada pelo Ministério da Cultura francês divulgou seu esperado relatório sobre o complexo tema. Os franceses não fecham as portas para o Google, mas querem manter o controle de seu “patrimônio escrito”.
A comissão propõe a imediata criação de uma plataforma digital público-privada de consulta de obras, na qual editores, livreiros e atores privados da internet (como Google) estariam reunidos no objetivo comum de dar acessibilidade e visibilidade ao maior número possível de livros franceses. A nova plataforma substituiria a atual biblioteca digital Gallica, que hoje conta com 145 mil obras digitalizadas. O relatório sugere também uma troca simples das cópias de arquivos já digitalizados pelo Google e os estocados pelas bibliotecas francesas.
Umberto Eco não resiste às suas provocações intelectuais e especula que mesmo a “formidável invenção” da internet poderá desaparecer no futuro. E cita o exemplo do supersônico Concorde, sumido dos céus após o acidente de Gonesse, em 2000. “A história é realmente extraordinária. Inventa-se um avião que, em vez de oito horas, leva três horas para atravessar o Atlântico. Quem poderia contestar tal progresso? Mas renuncia-se, depois da catástrofe de Gonesse, estimando-se que o Concorde custa muito caro. É uma razão séria? A bomba atômica também custa muito caro!”
Ainda na fase de engatinhar, as bibliotecas digitais universais, no entanto, deverão crescer e ter futuro próspero e duradouro. Aos 62 anos, Jean-Yves Mollier não se autoriza alguma nostalgia. Dubitativo em relação ao e-book, tem a certeza, no entanto, de que as bibliotecas de livros de papel diminuirão de tamanho: “Essas grandes bibliotecas, como as de José Mindlin, no Brasil, pertencem ao passado. Em vez de milhares ou dezenas de milhares, teremos centenas de livros de papel”.
A humanidade continuará a ler, assegura, mas dizer que será majoritariamente no papel é um equívoco. Regressão haverá, aponta, se for negligenciada a apreciação crítica dos textos na tela. A civilização da leitura não está ameaçada, mas a civilização do papel, datada, está com o tempo contado, vaticina: “Vivemos um período de passagem, de corte epistemológico. Ainda pensamos a modernidade com conceitos adaptados do passado. Nessa fase, experimentaremos alguma dificuldade. É difícil ver um universo morrer. Mas não concordo com o discurso de Cassandra. Aceitemos trocar nossos hábitos. Temos de acolher a informática com muita esperança”. ©

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