quarta-feira, 5 de maio de 2010

Direitos autorais impedem digitalização de acervos

Direitos autorais impedem digitalização de acervos

Por Tatiana de Mello Dias no Yahoo

"Em todo lugar a que vou, tenho que debater com o Ecad. Não tem ninguém do Ecad aqui?", provocou Marcos Souza, coordenador-geral de direitos autorais do Ministério da Cultura (MinC), no Simpósio Internacional de Políticas Públicas para Acervos Digitais. Ali, por acaso, não tinha. O evento, que aconteceu semana passada em São Paulo, reuniu especialistas de vários países para discutir a digitalização de acervos. E quase todos concordaram em uma questão: os direitos autorais são um dos maiores impedimentos para digitalizar acervos, mesmo que seja só para fins de preservação.

São vários exemplos: quase 80% do acervo digitalizado pelo Google Books não pode ser colocado na web por causa de direitos autorais. A Brasiliana, biblioteca digital da USP, não pôde digitalizar obras raras de Guimarães Rosa. A Cinemateca assiste sem ter o que fazer o tempo destruir o original do filme "A Hora e a Vez de Augusto Matraga" (1965), de Leonardo Villar, porque os herdeiros estão brigando por quanto vão cobrar pela digitalização da obra. E, só para dar mais um exemplo: Marcos Souza contou que foi alertado por uma entidade de proteção aos direitos autorais que uma biblioteca não poderia emprestar livros porque "isso fere os direitos autorais".

"Hoje, se uma biblioteca tem um livro que não caiu em domínio publico que começa a ser estragado pela umidade, ela tem que deixar estragar", diz o coordenador do MinC. A lei brasileira impede, por exemplo, a cópia de um livro mesmo que ele esteja esgotado. Não há menção às novas possibilidades da tecnologia - como a digitalização para restauração.

Por que chegamos a esse ponto? "A lei é de 1998. Havia uma perspectiva de que o direito autoral
era só no âmbito privado. A lei ficou mais de 11 anos tramitando no Congresso e foi objeto de vários interesses específicos, e nenhum deles era o interesse público", critica Marcos Souza.

O texto da reforma da lei de direitos autorais vem sendo discutido em fóruns desde 2007. O projeto encabeçado pelo MinC prevê a criação de um órgão nacional para fiscalizar as entidades arrecadadoras de direitos. Cogitou-se a criação de um Instituto Nacional de Direito Autoral - mas esse e outros pontos não são confirmados pelo MinC.

Em entrevista à reportagem, o coordenador falou sobre o campo minado autoral. De um lado estão ativistas da internet, blogueiros, bibliotecas digitais e artistas independentes; do outro, estão as associações de proteção aos direitos autorais e alguns artistas, que criticam o MinC de "estatização" de um direito privado e de não tê-los ouvido na elaboração da reforma.

A oposição culminou na criação do Comitê Nacional de Cultura e Direitos Autorais, um movimento de "resistência" da classe artística contra a reforma na lei. "O papel do Estado não é interferir numa gestão que pertence claramente à sociedade civil", diz Roberto Mello, presidente da Abramus. "Nós temos uma lei nova. Não é que nós sejamos contra tudo. Mas você não pode fazer isso sem consultar a classe autoral brasileira".

O MinC classifica como "legítima" a mobilização de setores da sociedade. Mas Souza alfineta: "nesse caso específico são setores que tinham se recusado a participar mais efetivamente do debate. Quando participavam, em vez de apresentar propostas, atacavam quem falava qualquer coisa que não fosse aquilo com que eles concordavam".

Souza diz que o País é um dos únicos no mundo onde não há uma entidade pública que fiscalize o que chama de monopólio do Ecad na arrecadação dos direitos. E isso, afirma, pode render problemas diplomáticos. O País é signatário do Trips (Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio) e, portanto, se o Ecad não recolhe os direitos sobre uma música internacional tocada no rádio, o Brasil está sujeito a retaliação. Já houve um caso: "Nós ingenuamente argumentamos 'mas o Brasil não supervisiona...', e responderam 'o problema é de vocês, que são signatários do Trips". "É uma preocupação que o Estado tem que ter, e todos têm menos o Brasil. Ficamos vulneráveis", diz.

O coordenador diz que, por enquanto, acordos como o Acta não afetarão o Brasil. "Não somos parte da negociação e não pretendemos aderir". Mas, no futuro, o acordo que endurece a batalha antipirataria no mundo pode preocupar: "Podem tentar empurrar o Acta como instrumento de pressão para qualquer coisa. Isso é preocupante". Por enquanto, porém, é melhor voltar a atenção ao próprio umbigo. O texto da reforma da lei seria apresentado no final de 2009, mas o lançamento foi adiado. Hoje, Souza diz que prefere não divulgar datas para evitar novos adiamentos. Mas que vai sair, isso vai.

O QUE PODE MUDAR

- USO PRIVADO: O usuário poderá fazer cópia das obras para uso privado e também para interoperabilidade (por exemplo, copiar uma música do CD para o MP3).

- REMIX: Pequenos trechos poderão ser usados sem a necessidade de autorização nem pagamento.

- EXCEÇÕES: A lei permite a cópia sem autorização se a obra estiver esgotada, para conservação e pesquisa (por museus e bibliotecas), para fins de difusão cultural sem lucro (como cineclubes) e para garantir a acessibilidade.

- LICENÇA: O Estado poderá licenciar obras consideradas de interesse público. O mecanismo será aplicado para obras órfãs (aquelas em que não é possível localizar o autor), esgotadas ou para aquelas em que os titulares colocam obstáculos ao licenciamento

- PAPEL DO ESTADO: Será criado um órgão estatal para área. Segundo o MinC, a ideia não é arrecadar direitos, mas regular a atuação do Ecad (que hoje tem monopólio sobre a arrecadação de direitos). A criação de um instituto não foi confirmada

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