sexta-feira, 6 de maio de 2011

Revistas científicas: para quê?


Porque a ciência brasileira só será verdadeiramente independente quando dispuser de periódicos brasileiros de alta qualidade internacional para veicular nossas futuras grandes descobertas

Maurício Rocha e Silva

Pesquisa científica é história brasileira de sucesso, mas periódicos brasileiros apenas engatinham. Em 1970, quando a pós-graduação começou pra valer, o Brasil era insignificante no mundo da ciência, exceto por uns poucos luminares como Carlos Chagas, Mauricio Rocha e Silva, Cesar Lattes e Crodowaldo Pavan. Não eram os únicos, mas a lista era curta. Naquele ano cientistas brasileiros publicaram menos de mil artigos científicos dando-nos um modesto 53° lugar mundial. Em 1996 estávamos em 21° lugar com mais de oito mil artigos (0,5% da produção mundial). Em 2009 estávamos em 13°, com cinqüenta mil publicações (2% da produção mundial). Só três outros países cresceram tanto quanto nós: China, Índia e Coréia do Sul. Entre os BRIC (Brasil, Rússia, Índia e China) ficamos em 3° lugar em quantidade (adiante da Rússia), e em 1° em qualidade, segundo critérios internacionais de avaliação.

História de sucesso, porque produção científica em 13° lugar é nosso único Índice de Desenvolvimento Humano comparável ao nosso 8° lugar como economia. Nossos outros critérios ficam todos abaixo do 50° lugar.

Nossa pesquisa médica é destaque (junto com genética, agropecuária e tecnologia sobre petróleo em águas profundas e aeronáutica, para citar alguns): temos uma longa história em moléstias contagiosas, começando com Carlos Chagas e em hormônios circulantes, com Mauricio Rocha e Silva, mas a grande evolução recente incluiu temas como medicina de urgência, oftalmologia, cirurgia plástica e psiquiatria, para citar exemplos. Muito a comemorar e muito a agradecer a CAPES - Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, responsável pela brilhante estratégia de formação maciça de mestres e doutores em todas as áreas do saber.

Um bom artigo científico geralmente é um texto curto, 5 a 10 páginas, com uma contribuição original em algum campo do saber. Seus ingredientes principais são: uma boa idéia, pesquisa à literatura, metodologia adequada, execução rigorosa, resultado original, redação de qualidade, citações bibliográficas adequadas e finalmente escolha feliz de periódico. No século passado, pesquisas bibliográficas eram feitas à unha, começando por consultas (chatíssimas!) a índices de publicações; encontradas as referências essenciais, havia que copiá-las das revistas de nossas bibliotecas. Quando a biblioteca não tinha a(s) revista(s) (coisa muito comum) era necessário solicitar cópias aos autores, que levavam semanas para chegar, pelo correio, é claro. Prontos, nossos artigos só tinham um destino possível, se quiséssemos ser lidos: encontrar revistas do primeiro mundo (Estados Unidos e Europa) que aceitassem nossa obra, porque essas revistas eram as únicas visíveis.

O milênio revolucionou o processo, introduzindo três novidades, todas ligadas à internet: em Washington, surgiu o portal de periódicos científicos da Biblioteca Nacional de Medicina dos Estados Unidos ( http://www.pubmed.gov/ ): tudo o que antes se pesquisava à mão passou a rolar via buscas eletrônicas, com filtros sob medida para os mais exigentes paladares. Em Brasília, a CAPES criou o Portal de Periódicos ( http://www.periodicos.capes.gov.br/ ), uma coleção de 30 mil periódicos de todo o mundo, em todos os ramos do conhecimento, à disposição de estudantes, cientistas ou professores que podem consultar, baixar e ler gratuitamente qualquer artigo da coleção; resolveu-se, de modo completo, o problema de consulta bibliográfica no Brasil.

A terceira novidade ocorreu em São Paulo e começou a revolucionar o destino de nossa produção científica: a Biblioteca Regional de Medicina criou o SciELO ( Scientific Electronic Library Online, http://www.scielo.br/ ), onde as revistas cientificas da região (hoje cerca de 814, metade delas brasileiras) são oferecidas em acesso aberto gratuito e universal. O SciELO está “linkado” ao PUBMED de modo que qualquer busca PUBMED “enxerga” as revistas SciELO; o acesso gratuito permite ao consulente em qualquer lugar no mundo ler, baixar e imprimir qualquer artigo publicado na América Latina.

Publicações visíveis geram leitores e citações e a revolução SciELO fez as duas coisas: o número de leitores aumentou quase mil vezes, passando de 320 mil em 1999 para 230 milhões em 2010. O número de citações a artigos da coleção saltou de 2 mil para 25 mil, a imensa maioria de autores de outros países. Exemplos dessa revolução são a antiga Revista do Hospital das Clínicas de São Paulo, antes invisível e medíocre, rebatizada CLINICS em 2005, com o segundo fator de Impacto do Brasil, em 2009; outra é nossa revista mais antiga “Memórias do Instituto Oswaldo Cruz”, a mais citada dentre as brasileiras, numa curva ascendente espetacular.

Portanto, até o começo deste milênio, periódicos brasileiros eram praticamente invisíveis. Só publicava “em casa” quem não conseguia publicar no exterior. Apenas um seleto grupo de menos de dez revistas brasileiras, que eram visíveis lá fora. Hoje são mais de quatrocentas.

Estamos no caminho certo, porque a ciência brasileira só será verdadeiramente independente quando dispuser de periódicos brasileiros de alta qualidade internacional para veicular nossas futuras grandes descobertas. Até lá, nossos cientistas dependerão dos humores de editores estrangeiros restringindo a publicação da produção do terceiro mundo. Geralmente com razão, mas às vezes por preconceito, outras de modo antiético. Principalmente quando descobrimos algo importante. Boas revistas locais são imperativas de autonomia científica.

(*) Maurício Rocha e Silva é editor da revista Clinics, publicação científica do Hospital das Clinicas de S.Paulo.

Fonte: Agência Amazônia

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