segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Respeitável público

Como o formato digital está ajudando a ampliar o acesso a produções que perderam os direitos autorais

Por Tatiana de Mello Dias / Link

2012 será um ano importante para os fãs do escritor irlandês James Joyce. É que, a partir de 1o de janeiro, sua obra inteira entra em domínio público – e o clássico Ulisses poderá então ser reproduzido, remixado, reeditado e revendido por qualquer um. E isso é especialmente importante porque o neto do escritor, Stephen Joyce, sempre fez questão de restringir ao máximo o uso dos textos do avô. A partir do ano que vem, Joyce estará livre.

“Como seres humanos, nós precisamos ter um grande espaço livre para nos comunicar uns com os outros, sem as limitações impostas pelo copyright”, disse ao Link o pesquisador holandês Joost Smiers, autor do livro Imaginem o Mundo Sem Direitos de Autor Nem Monopólios, de 2005 (leia a entrevista aqui).

O domínio público é o mecanismo legal que garante que obras sejam liberadas do copyright após um determinado prazo.

Por definição, domínio público é a extinção dos direitos autorais – principalmente os patrimoniais, que garantem a exclusividade para exploração econômica da obra.

E se grande parte das obras que já estão em domínio público está guardada em museus ou bibliotecas, a digitalização e a internet têm um papel importante para garantir a principal função do domínio público: possibilitar o acesso a esse material. “A internet veio redefinir tanto o papel do direito autoral quanto o do domínio público”, crava Sérgio Branco, professor da Fundação Getúlio Vargas no Rio de Janeiro e autor do livro O Domínio Público no Direito Autoral Brasileiro, que será lançado em setembro. Só que essa relação não é tão simples – governos e instituições ainda não aprenderam a respeitar os princípios básicos do domínio público.

Desrespeito. O autor constatou uma série de problemas em relação à maneira como governos e instituições tratam o domínio público – no Brasil e no mundo. “Fiz uma pesquisa em quatro instituições de arquivos públicos e verifiquei um grande desrespeito às obras”, diz. A rigor, tudo o que está em domínio público deve ser acessível por qualquer um, para qualquer finalidade. Mas as instituições costumam exigir declarações sobre o uso que se dará à obra e vetam qualquer uso diferente.

A Lei de Direitos Autorais no Brasil não regula o tema. “A lei me parece pouco eficiente”, diz Branco. “Ela não prevê o domínio público voluntário. Não há razão para isso”, critica. A lei simplesmente determina o prazo de proteção no Brasil: 70 anos após a morte do autor, prazo considerado longo por instituições como a ONG Consumers International, que colocou o Brasil como o país com a quarta pior lei de copyright do mundo em relação ao acesso à cultura e uso educacional. “A rigor, podemos dizer que o prazo hoje vigente no Brasil já é suficientemente longo para representar um desequilíbrio nas relações entre autor e sociedade”, diz Branco em sua tese. “Parece claro que os frutos econômicos decorrentes da exploração da obra se esgotam, em regra, muito antes de expirado o prazo de proteção.”

No ano passado, a Argentina aprovou uma lei para estender de 50 para 70 anos o prazo de proteção de obras fonográficas. Um dos motivos era o de que um disco da cantora Mercedes Sosa entraria em domínio público em 2012. Detalhe: o LP estava fora de catálogo há 48 anos, portanto sem gerar renda para a família da cantora. “São histórias absurdas porque você está protegendo algo que não está sendo explorado e impedindo o acesso àquela obra”, diz Branco.

Nos anos 60, o compositor Carlos Imperial virou dono da canção “Meu Limão, Meu Limoeiro”. Registrou a cantiga popular como sua composição. Sua mãe ficou indignada: “Mas, Carlos, como você teve coragem? Eu cansei de embalar você à noite cantando essa música”. Ele respondeu: “Música e mulher para mim não têm dono, vou lá e pego”. Até hoje, toda vez que alguém tocar publicamente a cantiga popular, terá de pagar direitos autorais à família Imperial.

Faz sentido? O que Imperial fez é um exemplo extremo de uma prática comum da indústria cultural: pegar uma obra em domínio público torná-la uma obra protegida por direitos autorais. É só lembrar dos clássicos da Disney (adaptações de contos de fadas já em domínio público).

Nos EUA, a pressão da indústria fará que nenhuma obra entre em domínio público no período que vai de 1998 até 2018. A lei, conhecida como Mickey Mouse Act, foi aprovada após uma pressão no Congresso porque os primeiros filmes da Disney entrariam em domínio público. “O maior problema é que, quando você prolonga o prazo, carrega consigo não só os filmes da Disney, mas toda a cultura norte-americana. Com isso você tem não só a perda da reciclagem das obras, porque a película se deteriora e o livro sai de catálogo, mas também uma perda econômica”, diz Branco. “Se uma obra intelectual não foi remunerada nos primeiros anos, dificilmente será 70 anos depois, ou 90. Não faz sentido manter essa proteção tão longa”.

No ano passado, toda a obra do psicanalista Sigmund Freud entrou para domínio público. Ninguém perdeu dinheiro com isso – pelo contrário. “Apareceram novas e melhores edições das obras. Há competição: se não tem mais monopólio, várias editoras podem publicar a obra”, diz Branco.

O BÁSICO
Domínio público é a extinção do direito patrimonial do autor sobre a obra (ou seja, do monopólio de exploração comercial).
Não é possível licenciar uma obra em domínio público. Mas há alternativas, como a licença CC0, da organização Creative Commons, que sinaliza que o autor abriu mão de todos os direitos.
Uma vez em domínio público, não é possível aos detentores recuperarem os direitos sobre a obra.

ONDE ENCONTRAR
Internetarchive.org: Tem de tudo. Vídeos, livros, fotos, softwares e sites.
The Public-Domain Movie Database: O visual é terrível, mas há um bom acervo de filmes, séries e documentários.
Project Gutenberg: Reúne mais de 36 mil livros para Kindle, Android, iPad e iPhone.
Domíniopúblico.gov.br: Imagens, sons e livros, como a obra completa de Machado de Assis.
Publicdomainworks.net: Todo o tipo de conteúdo, como artigos acadêmicos.


O QUE ESTÁ E O QUE NÃO ESTÁ EM DOMÍNIO PÚBLICO

Jingle Bell Rock. Não. Esta e muitas outras canções de Natal, como ‘Santa Claus is Coming to Town’, pertencem a gravadoras.

Alice no País das Maravilhas. A obra de Lewis Carrol é pública. Mas as adaptações, como a recente versão de Tim Burton no cinema, são protegidas.



Monalisa. Sim. A reprodução está em domínio público. Nos EUA, se alguém fotografar o quadro, a foto também é pública.
Sigmund Freud. Sim. Todos os livros do psicanalista entraram em domínio público na virada de 2010. Isso fez que surgissem novas e melhores edições de suas obras.


Meu limão, meu limoeiro. Não. A cantiga popular foi registrada por Carlos Imperial e não pode ser usada livremente até 2063.
Guimarães Rosa. Não. Os livros do escritor só entram em domínio público em 2037. Até lá, a família tem total controle sobre a forma como as obras serão publicadas.


Walter Benjamin. Sim. As obras do escritor alemão da Escola de Frankfurt entraram em domínio público no começo de 2011.
Parabéns a você. Não. A música só entra em domínio público nos EUA em 2030 (é da Warner). Na Europa o copyright expira em 2016.


Leon Trotsky. Sim. Tudo o que ele fez se tornou domínio público desde o primeiro dia do ano passado.
Noel Rosa. Sim. As músicas do compositor morto precocemente estão livres desde 2008, quando sua morte completou 70 anos.




‘É bizarro pensar em proteção por 70 anos’

Por Tatiana de Mello Dias

Para pesquisador, o copyright é injusto e perigoso



Você escreveu o livro em 2005. Mudou muita coisa?Muito e nada. A começar pelo nada: o sistema de copyright ainda vigora. Isso faz que poucas estrelas fiquem ricas e a real diversidade de expressões culturais fique à margem da atenção pública. Há poucas companhias que têm uma influência enorme no que vamos ver, ouvir e ler. Ao mesmo tempo, muito mudou. Mais e mais pessoas começaram a perceber que o sistema de copyright não é justificável. O futuro é a digitalização. Foi o que mais mudou desde 2005. Podemos imaginar que na era digital a troca de música, imagens e textos poderá ser controlada? Seria muito ingênuo pensar que nós podemos ter tanta força policial disponível para controlar a comunicação de todo mundo.
Mecanismos de licenciamento mais flexíveis são a solução?O Creative Commons é um passo adiante. No entanto, ele não ataca os conglomerados da informação. O CC cria um nicho para os artistas que querem compartilhar seu trabalho com os outros, mas não muda as estruturas do mercado e as relações de poder. E, assim, não remunera os artistas que compartilham. Isso não é justo.
O prazo de 70 anos após a morte do autor é longo demais?Se o copyright serve para remunerar os artistas – e ele não faz isso para a maioria deles – então é bizarro pensar em proteção por 70 anos após a morte deles. Isso deixa claro que o sistema de copyright não funciona para a maioria. É uma proteção ao investimento para as empresas que querem extrair o máximo de dinheiro possível dos produtos – que é como eles se referem às expressões culturais. Isso nos dá o conceito de propriedade. Até o presente, tudo que pode ser comercializado pode se tornar propriedade privada. A consequência é que nós não temos mais um espaço livre onde, como seres humanos, podemos nos comunicar uns com os outros sem restrições. Se nós tivéssemos um mercado cultural que funcionasse com igualdade de condições onde não houvesse empresas dominantes – a maioria dos artistas poderia ter um lucro razoável sem ter a propriedade de seus trabalhos.
A indústria está se apropriando das expressões culturais?Se alguém privatiza as expressões culturais – que é o que o copyright faz –, então nós não podemos mais usá-las. Adicione a isso o fato das empresas que fazem essa privatização controlarem também as condições de produção, distribuição, promoção e recepção, então nos encontraremos, de uma perspectiva democrática, em uma situação perigosa.
O copyright limita os artistas?Claro. Em todas as culturas, em todos os lugares, os artistas usam fragmentos de outros para criar e realizar de novo. É uma aberração do Ocidente, datada de dois séculos, que isso seja proibido. Claro, eu posso admirar muito o trabalho de artistas específicos, mas é um exagero argumentar que um artista é um gênio que criou seu trabalho só com sua própria inspiração, e que por isso deveria ter o direito exclusivo de uso da obra. Eu fico surpreso que algumas pessoas no século 21 ainda tenham essa ideia romântica sobre um artista!
Por que a eliminação do copyright poderia levar a mais competição e diversidade?Teríamos igualdade de condições. Em um mercado assim, não haveria forças dominantes, somente muitas pequenas e médias empresas. Não seria um incentivo para uma delas “roubar” o trabalho de outro artista. As empresas teriam mais ou menos a mesma posição em mercados culturais, o que faria que elas pudessem competir livremente. Além disso, elas teriam preferências artísticas diferentes, e ofereceriam criações e performances relacionadas ao seu público. E o público seria mais livre para fazer escolhas. Não seria mais tão influenciados pelos esforços de marketing dos grandes conglomerados culturais.
Os artistas estão aptos a trabalhar sem copyright?Muitos artistas, e seus empreendedores, na verdade já trabalham sem fazer dinheiro com o copyright. Mas eles sentem a necessidade de criar e produzir. O problema é que eles fazem isso em um contexto econômico que não é justo e é muito direcionado ao terrível princípio de ‘o vencedor leva tudo’. Para esses artistas é uma luta desigual, e para a democracia é extremamente perigoso.

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