Cada vez mais numerosa, lista de acervos digitalizados de cientistas e personalidades conta agora com coleção de Nelson Mandela. A tendência, que pode ajudar a preservar a história da ciência e das lutas sociais, ainda tem poucas e isoladas iniciativas brasileiras.
Marcelo Garcia |Ciência Hoje On-line
Diários, bilhetes, cadernos, cartas, fotos: acervos ‘on-line’ reúnem enorme quantidade de documentos de grandes cientistas e personalidades e permitem conhecer o passado e pensar o futuro da ciência e das lutas sociais. (montagem: Marcelo Garcia)
O lançamento recente de um acervo on-line de documentos e imagens do líder político sul-africano Nelson Mandela é mais um passo de um movimento que tem reforçado o papel da internet como receptáculo moderno da memória da humanidade. Mandela entra para a lista de grandes cientistas e personalidades que passam a ter um vasto material relacionado à sua vida preservado e acessível na rede. No Brasil, iniciativas desse tipo, verdadeiros convites a conhecer o passado e grandes oportunidades de pensar sobre o futuro, ainda são isoladas e esbarram na falta de investimento e numa cultura que pouco valoriza sua história.
O acervo do líder africano foi disponibilizado pelo Centro de Memória Nelson Mandela em parceria com o Instituto Cultural Google. Entre as fotos, diários e documentos digitalizados, estão um mandado de prisão, cartas escritas do cárcere para sua família e até seu cartão da igreja. A CH On-line já abordou iniciativas parecidas, quando do lançamento dos acervos digitais dos físicos Albert Einstein e Isaac Newton, por uma universidade de Jerusalém e pela Biblioteca Digital de Cambridge, respectivamente.
A Biblioteca de Cambridge tem o projeto de digitalizar todo seu acervo de sete milhões de livros e documentos
A biblioteca britânica, aliás, tem o projeto de digitalizar todo o seu acervo de sete milhões de livros e documentos. Até agora, entre o material on-line é possível conferir, por exemplo, uma série de textos islâmicos, alguns com mais de mil anos, e um acervo do naturalista britânico Charles Darwin, que conta com rascunhos da teoria da evolução e notas de sua viagem no Beagle. Quem também está interessada na área é o Google, que pretende usar o projeto de Mandela como modelo para resgatar a vida de outras personalidades do século 20.
História digital do mundo
Há muitos outros exemplos desse recente ‘ganho de memória’ da internet. A vida do próprio Sir Isaac é alvo de outras iniciativas, como o Newton Project, da Universidade de Sussex, e um projeto da Biblioteca Nacional de Israel que aborda o lado místico do personagem. Interessado em teologia e alquimia, ele via na análise das escrituras sagradas uma ciência capaz, inclusive, de prever o fim do mundo (em 2060, anotem aí).
Ao ter seus arquivos pessoais disponibilizados na internet, Nelson Mandela se junta a personalidades e cientistas como Newton, Einstein e Darwin. (imagem: reprodução)
Nos Estados Unidos, diversos nomes importantes para a formação do país têm seus acervos disponíveis on-line, como Abraham Lincoln, Benjamin Franklin e Thomas Jefferson – iniciativas mantidas pela Biblioteca do Congresso e pelas universidades de Yale e de Princeton, respectivamente. O ativista político Martin Luther King Jr também possui uma coleção digital, com fotos e rascunhos de seus mais importantes discursos.
O Instituto Americano de Física preserva acervos com mais de 30 mil documentos de diversos cientistas e uma coleção de história oral com centenas de entrevistas, além de promover exposições on-line sobre importantes personagens da história da ciência, como Marie Curie e suas descobertas sobre a radioatividade e Werner Heisenberg, um dos fundadores da mecânica quântica. Na área de economia e política, o Avalon Project reúne documentos como o Código de Hamurabi e até o Tratado de Tordesilhas.
Amnésia brasileira
Apesar da importância que a pesquisa brasileira apresenta hoje, as iniciativas de resgate dessa história ainda são muito isoladas no país. Na opinião do jornalista e historiador da ciência Cássio Leite Vieira, editor de internacional da revista Ciência Hoje, elas esbarram na falta de uma cultura de preservação. “Temos pouca tradição no campo e, em geral, a história recebe pouco destaque na formação dos novos pesquisadores”, afirma.
Especialista em filosofia e história da ciência, Antonio Augusto Videira, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), critica o atual modelo produtivista de construção do conhecimento. “É fundamental valorizar nossa história, pois só assim podemos avaliar as consequências de nossas decisões”, defende. “Por isso, são necessárias políticas públicas e ações pulverizadas, com a formação de redes, pois o material a ser preservado é maior que a capacidade das instituições dedicadas a esse trabalho.”
Diversas iniciativas internacionais têm ajudado a recuperar a memória de grandes cientistas. O Brasil conta com projetos isolados, mas que já o colocam em posição de destaque entre países sulamericanos e em desenvolvimento. (imagens: reprodução; montagem: Marcelo Garcia)
Uma dessas instituições é a Casa de Oswaldo Cruz (COC), da Fiocruz, que preserva – e agora disponibiliza na internet – acervos de pesquisadores da área da saúde, como Carlos Chagas e Adolpho Lutz. O historiador Paulo Elian, vice-diretor da entidade, defende a importância de combinar preservação com pesquisa histórica e divulgação científica e destaca a falta de políticas públicas no setor. Na própria Fiocruz, outro acervo interessante é o do sanitarista e político Sérgio Arouca, criado pelo Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em saúde (Icict)
Outra instituição com tradição em preservar a história da ciência, o Museu de Astronomia e Ciências Afins (Mast), guarda documentos de pesquisadores como o médico Olympio da Fonseca e o físico Bernhard Gross, mas pouco desse material está disponível on-line. Situação parecida com a da Fundação Getúlio Vargas (FGV), que reúne documentos de personalidades que vão do médico e político Arthur Neiva a Tancredo Neves, porém disponibiliza pouco desse acervo na internet. A FGV mantém, ainda, projeto de preservação da história oral por meio de entrevistas com grandes personalidades sobre a sociedade brasileira.
É claro que existem problemas, mas estamos adiantados em relação aos demais países em desenvolvimento
Algumas universidades, como a Estadual de Campinas (Unicamp), também possuem acervo on-line de pesquisadores como o físico César Lattes e o historiador Sérgio Buarque de Holanda. Documentos e imagens de cientistas como Nise da Silveira e José Reis estão disponíveis no Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia. Outras iniciativas isoladas preservam pequenos acervos de figuras como José Bonifácio, Santos Dumont, Juscelino Kubitschek e Paulo Freire. Há ainda material sobre episódios importantes da história brasileira nos sites da Biblioteca Nacional, do Acervo Nacional e da Rede da Memória Virtual.
Apesar de toda a limitação apontada pelos especialistas, há exemplos interessantes de ricos acervos já disponibilizados on-line no Brasil. Por isso, a arquivologista Maria da Conceição Castro, chefe do departamento de documentação da Casa de Oswaldo Cruz, destaca o pioneirismo do país. “Os sistemas de acervo informatizados são recentes e requerem um grande detalhamento e investimento. É claro que existem problemas, mas estamos bastante adiantados em relação aos países sulamericanos e em desenvolvimento.”
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