sábado, 8 de setembro de 2012

Digitalizando Pierre Verger


Ricardo Sangiovanni | A Tarde


Pierre Verger | AcervoFoto de Pierre Verger

Pierre Verger comparou o resultado de seus 50 anos de fotografia a uma escultura, "a sobra do que foi um bloco de mármore ou de granito, depois da eliminação, pelo escultor, das partes julgadas inúteis." Em se tratando da obra de Verger, porém, a priori não há grão de pó que possa ser desprezado. Assim, desde o ano passado, a fundação que administra o legado do fotógrafo e antropólogo francês está digitalizando, um a um, os mais de 61 mil negativos que Verger arquivou em vida.

No primeiro ano do processo de digitalização - que deve se estender até 2014 - , pouco mais de 10 mil imagens já foram escaneadas e inseridas no banco de dados da Fundação Pierre Verger. É a segunda etapa de um trabalho de conservação do acervo que começou há sete anos, com a higienização, recatalogação e acondicionamento adequado dos negativos. Na Bahia, é a primeira vez que um acervo fotográfico particular desse porte é digitalizado. E, muito embora a digitalização de acervos seja uma tendência mundial -  já que, além de preservar originais, favorece a acessibilidade e circulação de conhecimento - , no Brasil, ainda são poucas as instituições (tanto públicas quanto privadas) que investem em projetos dessa natureza.

À  medida em que vão sendo digitalizadas, as imagens de Verger são lançadas no banco de dados da fundação, o que permite que  sejam visualizadas em tamanho maior e com mais detalhes já no momento da consulta virtual. O acervo já está 100% catalogado, e o acesso é aberto ao público, mas as imagens que ainda não foram digitalizadas aparecem em baixíssima resolução na tela de quem faz uma pesquisa.

Ademais, a digitalização ajuda a conservar os negativos porque permite a edição e reprodução das imagens sem que haja necessidade de manuseio. Entre as imagens já escaneadas, de tudo já se viu um pouco: de séries inteiras de negativos velados  (nada fica de fora) a curiosidades inéditas do universo de Verger.

Primeira foto?
Uma das grandes dificuldades para quem pesquisa o acervo de Verger é saber com precisão a data em que cada foto foi feita. O motivo parece até um chiste: o principal critério escolhido pelo próprio Verger para classificar suas imagens era o local (país,  cidade etc.) do clique. E quando havia muitas de um mesmo lugar (como da Bahia), Verger preferia, como alternativa, arquivá-las por evento (p. ex.: "Festa do Bonfim"; "Carnaval") ou por temática (p.ex.: "Capoeira", "Candomblé"). Raríssimas (e  pouquíssimo confiáveis) eram as classificações feitas por data.

Para melhorar  a datação do acervo, o coordenador do departamento de fotografia da fundação, Alex Baradel, encontrou uma solução tão simples quanto eficaz. Ele percebeu que 1) cada câmera Rolleiflex que Verger usava deixava nas bordas dos negativos uma marca específica, uma espécie de "impressão digital" da origem da foto; e 2) Verger usou não mais do que nove câmeras na vida, cada uma durante intervalos de tempo rastreáveis em suas anotações. Ora: bastou ligar os pontos para ver que dava para mapear com mais precisão o período em que cada fotografia foi feita.

Daí, começaram a surgir descobertas. A principal, até agora, é a foto que ilustra a primeira página desta reportagem, feita na Ilha de Guadalupe, nas Antilhas,  identificada como uma das primeiras que Verger fez na vida, com sua primeira Rolleiflex, em 1932.

A classificação original do acervo, feita pelo próprio Verger, dava a entender que a imagem era de 1936, ano em que visitou as Antilhas - a foto já foi inclusive exposta com essa data. Porém, as marcas nas bordas do filme eram diferentes das demais daquele conjunto  - e iguais às da primeira grande viagem de Verger, ao Taiti. A confirmação do achado seria encontrada em um relato que Verger faz da viagem, no livro 50 anos de fotografia, de 1982. Ali ele conta que, no caminho para o Taiti, o navio fizera uma escala em Guadalupe (escala da qual Verger aliás guardava "apenas uma lembrança confusa" devido à farra natalina de "ponche de rum" que fizera com a tripulação). Pronto: enigma resolvido.

A foto pode não parecer especial: é ainda dos primeiros anos "míopes" de sua fotografia, segundo a autoanálise do próprio Verger no livro. Mas, reparando bem, salta aos olhos - não sem uma leve ironia (talvez acidental,  talvez não) - o contraste entre a camponesa simples e negra, de vestido branco, e a banhista glamourosa e branca, de maiô negro, numa ilha no meio do Atlântico.

Outra descoberta curiosa foi a de um negativo cujas bordas reparou-se que não tinham nada a ver com as marcas características de nenhuma das câmeras que Verger usou na vida. Seria o furo da metodologia ? Pois não. A foto era simplesmente de outra pessoa, e a descoberta não poderia ter sido mais simples: reparando bem, a imagem, feita em Tarabuco, na Bolívia, mostra alguém fotografando - e esse alguém é ninguém menos do que o próprio Verger. Uma raridade, já que Verger, como muitos fotógrafos, pouco deixou-se fotografar. Resta, agora, descobrir quem fez a foto.

Procura-se
Baradel não está sozinho na missão detetivesca de catar estranhezas no acervo. Responsáveis por escanear as centenas de caixas de negativos, as fotógrafas Fernanda Sanjuan e Tássia Novaes observam as imagens, uma a uma, atentas a cenas que destoem do conjunto. Casos sem solução são impressos e afixados na parede - feito aqueles cartazes de "Procura-se" dos filmes de bang-bang.

Um desses casos, recentemente solucionado, mostra que Verger às vezes se confundiu também em classificações por lugar: numa determinada caixa de negativos etiquetada como sendo da viagem ao Congo Belga (atual República Democrática do Congo) em 1952, 28 fotos retratavam   situações bem diversas das demais - entre as quais uma viagem de navio. Pelas marcas nas bordas, viu-se que as fotos eram de outra câmera - ok, mas feitas onde?

O enigma só se desfez quando, ampliando a inscrição em um barco salva-vidas que aparecia numa das fotos, pôde-se ler "St. Jacques". Aquela pista encontraria confirmação numa das dezenas de miniagendas em que Verger fazia anotações de viagem - no caso, a de 1948. Na data de 21 de outubro, ele dizia assim: "Embarquei em Cotonou (no Benin, ex-Daomé, costa oeste africana) debaixo de chuva, a bordo do Cap. St. Jacques". Era o nome do navio.
A foto é curiosa: mostra pessoas  dentro de uma espécie de célula salva-vidas içada não se sabe se para dentro ou se para fora do navio. Trata-se, em todo caso ,  de um precioso registro da primeira ida de Verger ao Daomé, onde nos anos seguintes ele se iniciaria nas religiões africanas e ganharia o nome de Fatumbi  (nascido de novo graças ao sistema de adivinhação Ifá).

Outras fotos duvidosas seguem penduradas nas paredes, em busca de solução. E, com mais de 50 mil imagens por digitalizar, outras mais aparecerão. Certo mesmo é o "compromisso de Verger em retratar a realidade", diz Fernanda, com a autoridade de quem já viu quase 12 mil imagens de Verger. "Há pouco 'devaneio fotográfico':  é um olhar essencialmente antropológico."

Ao comparar sua obra a uma estátua, Verger diz que "se algumas estátuas são obras de arte, outras são verdadeiros espantalhos. Mas não está em mim julgar em qual das categorias devem ser incluídos meus 50 anos de fotografia". Tarefa das gerações futuras - essas gerações digitais. 

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