sábado, 1 de dezembro de 2012

Brasiliana: uma raridade tecnológica

A USP prepara a inauguração da Biblioteca Guita e José Mindlin. Projeto abrigará o segundo maior acervo de História do Brasil no País e custou R$ 130 milhões.

por Kleber Gutierrez | Diário do Comércio

O mais novo vão livre da cultura local/L.C.Leite/LUZ

A biblioteca mais tecnologicamente arrojada do Brasil, e provavelmente a mais avançada do Hemisfério Sul, está recebendo os últimos retoques e deve ser aberta para o deleite cultural dos cidadãos e pesquisadores logo após o Carnaval.

A previsão é de seu diretor interino, o professor de História do Brasil Pedro Puntoni. Batizada Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin, o nome faz uma homenagem ao maior bibliófilo que este País já deu à luz, e à sua companheira de toda uma vida.

Puntoni sob a claraboia. L.C.Leite/LUZ

Ela foi criada para abrigar parte da coleção particular dos Mindlin, cuja doação plena à USP foi formalizada em maio de 2006. Mas com algumas obrigações, entre elas a construção de um edifício preparado tecnicamente para receber o acervo. O que vem sendo executado pela universidade – com o apoio de empresas e do governo federal por meio da Lei Rouanet – ao custo aproximado de R$ 130 milhões.


Preciosidades

Apenas a Brasiliana, que ocupará 7 mil metros quadrados dos 20 mil do prédio, terá um acervo de 21 mil títulos, algo como 45 mil volumes. E protegerá, conforme Puntoni, raridades como um livro de Montalboddo, uma edição italiana de 1508, em que pela primeira vez se fez uma referência impressa sobre a viagem de Pedro Álvares Cabral ao Brasil.

Modernas instalações para proteger o acervo/ L.C.Leite/LUZ

A Arte da Gramática, edição de 1595, do Padre Anchieta, e os relatos de viagem de Hans Staden, de 1557, (uma primeira edição encadernada em pergaminho, e a única do mundo) também estarão mais próximas do público.


O prédio está pronto, e a equipe de obras finaliza a instalação de mobiliário e sistemas de automação. 

O complexo será também a nova casa do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB), da Biblioteca de Obras Raras e do Sistema Integrado de Bibliotecas (SIB), que cuida das 46 instituições da universidade paulista. Juntos, comporão o segundo maior acervo de História do Brasil, só perdendo para o conjunto da Biblioteca Nacional do Rio de janeiro.

De ponta

Arquitetos e engenheiros locais, comandados por Eduardo de Almeida, professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU), e por Rodrigo Loeb, neto de José Mindlin, se encarregaram do projeto que, entre outros detalhes, tem uma dupla cobertura para proteger o acervo de todo tipo de intempérie.

As grandes paredes de concreto escondem drenos especiais que evitam qualquer infiltração. E houve intervenções no solo e no lençol freático para drenagem de todo o terreno. O desenho da estrutura criou um miolo hermético, ou seja, o acervo estará protegido no centro da edificação e o público será banhado pela luz natural que entra livre pela claraboia gigante.

Condições ambientais internas serão controladas por computador, que vigiará temperatura, umidade e até o nível de gás carbônico presente nas salas. O prédio todo é automatizado: há sensores de presença, câmeras e controles de acesso, alguns por meio de cartões com chips; outros, como nas zonas de acervo raro, por biometria: somente a impressão digital permitirá o ingresso nesses setores.

Humanidade digital
A biblioteca Mindlin também é um centro de pesquisa que já abriga grupos de estudos do livro e da edição, e desenvolvimento de trabalhos em História, Literatura e Humanidades Digitais.

Estas últimas amparadas pelo laboratório da Brasiliana. Usando softwares livres, em parceria com o ministério da Cultura, seus técnicos desenvolveram soluções únicas, como a plataforma Corisco, que agora são utilizadas por outras instituições, entre elas a Biblioteca Mário de Andrade.

Segundo Puntoni, o esforço resultou na articulação da Rede Memorial, um grupo de, atualmente, 100 instituições comprometidas com políticas de digitalização dos acervos – que adotam os princípios do acesso gratuito e aberto – e utilizam softwares livres para criar ambientes de colaboração entre si.

Como qualquer biblioteca de itens raros, explica o professor, "vamos tentar limitar o manuseio do livro físico. Mas temos de garantir ao máximo o acesso ao conteúdo das publicações. É aí que o digital ajuda a conciliar esses interesses aparentemente contraditórios".

Tanto que "tudo que é de domínio público, ou que não encontra barreiras de herdeiros por direitos autorais, já está sendo digitalizado". Até o momento, calcula Puntoni, temos  3.250 títulos online. Incluindo as obras completas dos grandes autores do século 19, como Machado de Assis, José de Alencar, Joaquim Nabuco, Casimiro de Abreu e Castro Alves.

Para ele, é preciso estar de mãos dadas com a alta tecnologia para preservar a memória, os acervos. "Entrando na cultura digital, entra-se no universo das pessoas, que passam a entender o valor dos objetos, dos livros."


O site da Brasiliana já atrai 15 mil usuários únicos por dia. E tende a ser a melhor maneira de desfrutar de seu precioso acervo, pois a sala de consulta física terá apenas 24 disputados lugares. E "os originais só serão vistos mediante solicitação específica que justifique o manuseio do exemplar físico".

Isso não significa que um grande fluxo de pessoas não seja esperado. Quem visitar o novo complexo poderá se instalar em mobiliário de designers brasileiros estrelados, como Carlos Motta e Sérgio Rodrigues (financiado por doação do BNDES), para usar os postos de trabalho digital ou desfrutar dos iPads emprestados pela organização.

Mostra
Para marcar a inauguração, duas exposições estão programadas: uma, permanente, outra, temporária. A que resistirá ao tempo, com materiais como vidro e metal, abordará a formação da coleção, a vida de Guita e José Mindlin, e a cultura do livro: história da imprensa, tipografia, design, e seus artifícios para construir o prazer da leitura. A efêmera mostrará aos aficcionados pela materialidade do papel, em vitrines, os raros exemplares da Biblioteca Mindlin.

A USP tem feito vultosos investimentos em todos os campi espalhados pelo Estado. Conforme Puntoni, há 400 mil metros quadrados em construção de novas instalações, com investimentos de R$ 1 bilhão. Na Brasiliana, a universidade investiu R$ 80 milhões.

Mindlin,  o mais  pertinaz bibliófilo brasileiro deixou um legado de raridades,  que agora  vão ganhar  o público. Luiz Prado/LUZ-20/10/2006

A 'doença boa' de José Mindlin

José Ephim Mindlin nasceu em São Paulo, em 8 de setembro de 1914, filho de pais russos. E formou-se advogado em 1936, pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Mas sua loucura com os livros começou bem antes, exatamente quando completou 13 anos e ganhou um exemplar de "Discurso sobre a História Universal", de Jacques Bossuet, em edição portuguesa do século 18. Estava irremediavelmente contaminado pelas letras. 

Morto aos 95 anos, no dia 28 de fevereiro de 2010, deixou ao País o resultado de toda uma existência dedicada a essa "doença boa", como costumava dizer. Teve a oportunidade de guardar suas próprias memórias na publicação "Uma vida entre livros" e não cansava de manifestar que "num mundo em que o livro deixasse de existir, eu não gostaria de viver".

Ao lado da amada Guita (Kauffmann, nome de solteira, e que conheceu nos corredores da universidade), os livros foram seus parceiros mais presentes. Pessoas próximas dizem que ele sempre os tinha por perto, em todos os cantos da casa, e muitos lidos simultaneamente ocupavam a cabeceira da cama. Estima-se que lia, ou relia, entre 80 e 100 títulos por ano.

Era paciente e determinado, tendo perseguido alguns exemplares de interesse por diversos lugares do mundo e ao longo de décadas,  como a primeira edição de "O Guarany", de José de Alencar, publicada em 1857, pela qual buscou por 20 anos. A primeira notícia que teve dela foi na década de 1960, quando um grego, no Rio de Janeiro, chegou a oferecê-la por mil dólares. Mindlin soube da oferta tarde demais. Passou anos atrás do exemplar, até que ele reapareceu em um leilão na Inglaterra. Ele, então, encarregou um livreiro de arrematá-lo. Mas quando os lances alcançaram 60 libras, o amigo desistiu. Só em 1977 conseguiu comprá-lo em Paris.  Na volta para o Brasil, Mindlin acabou perdendo sua raridade no avião, vindo a reaparecer após três dias: "O Guarany" tinha ido passear em Buenos Aires.

Saiba mais

Para acessar o acervo digital da Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin www.brasiliana.usp.br

Para conhecer 100 instituições com acesso gratuito a conteúdoswww.redememorial.org.br

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