sexta-feira, 14 de junho de 2013

Cultura digital e inserção da tecnologia na vida social são temas de estudo do pesquisador


Arte sobre foto de: Lukas Cravo

Entrevista André Lemos

Revista e 

Doutor em Sociologia pela Université Paris V (René Descartes),  pós-doutorado pela University of Alberta e McGill University, no  Canadá, André Lemos é professor associado da Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e membro fundador da Associação Brasileira de Cibercultura (ABCiber). Autor de livros como Cibercultura – Tecnologia e Vida Social na Cultura Contemporânea (Editora Sulina, 2002), Cidade Digital – Portais, Inclusão e Redes no Brasil (EDUFBA, 2007) e o e-book @re_vira_volta. Uma Experiência e Twitteratura (Ed. Simplíssimo, 2010), costuma compartilhar suas ideias em seu site pessoal (andrelemos.info). Entre elas, a questão do uso de informações pessoais pelas redes sociais. “As redes sociais são máquinas de produção de trocas informacionais entre pessoas, sistemas, softwares, bancos de dados. Muitas pessoas não têm consciência de que seus dados são coletados, estocados, vendidos”, afirma. “Precisamos compreender esse regime de monitoramento de dados e reforçar regimes jurídicos que protejam os cidadãos.” A seguir os principais trechos da conversa do pesquisador com a Revista E.

Na apresentação de seu livro Cibercultura – Tecnologia e Vida Social na Cultura Contemporânea, lemos que ele foi escrito por inquietação pessoal. Após a concretização do processo e o acesso dos leitores à obra, qual o sentimento predominante?

A questão da técnica me motiva desde os tempos da graduação. Sou engenheiro de formação e logo me interessei pela filosofia da técnica e pela história das ciências. Fui saindo das exatas e me encaminhando para as ciências sociais desde o mestrado. 

O livro Cibercultura é resultado da minha tese de doutoramento em sociologia, motivada pela inquietação intelectual em relação ao surgimento das tecnologias digitais, particularmente a microinformática e a telemática, que mostravam as suas potências com o começo da popularização da internet nos anos de 1990. O livro foi concluído, mas o interesse pela compreensão do fenômeno técnico continua, já que novos desafios aparecem a cada dia. 

O sentimento é de que o livro tem um papel histórico importante. Ele foi finalizado em 1995 em francês e levei alguns anos para traduzi-lo e atualizá-lo. Mas, mesmo assim, falo no livro de comunidades virtuais, quando hoje falamos de redes sociais, falo de ciberpunks, quando hoje falamos de Wikileaks, não havia ainda blogs, Wikipedia, YouTube, Google, Facebook, Twitter...

O conceito de cibercultura sofreu alterações com o passar dos anos? Como podemos entendê-lo atualmente?

Não acho que o conceito tenha sofrido alterações, se compreendemos a cibercultura como a cultura que emerge com as tecnologias de comunicação e informação a partir da convergência tecnológica dos anos de 1970. Desde a invenção da microinformática e o surgimento das redes telemáticas, a cibercultura cresce e nos envolve de forma cada vez mais ampla, ubíqua e planetária. 

Primeiro formam os microcomputadores, depois o surgimento do ciberespaço, agora falamos de web 2.0, mídias locativas e da internet das coisas, na qual a rede está se configurando como uma rede de todos os objetos conectados ao redor do planeta. Fala-se, hoje, em mais de seis objetos conectados por pessoa na rede. Mas não se trata apenas da configuração de um mundo das redes telemáticas. Precisamos compreender que o que estamos vendo é o mundo das redes telemáticas penetrando em todas as áreas, chegando hoje a uma hiperconexão global de objetos que tomam decisões autonomamente. 

O uso das redes sociais é bem disseminado no Brasil, mas tal prática acaba gerando críticas negativas. Qual a sua opinião sobre isso? A validade das redes sociais depende do uso que é feito delas?

Tudo depende das associações que se fazem e se desfazem a todo momento. Não é questão do uso, nem do objeto, ou seja, do determinismo tecnológico. Trata-se de observar como as formas de ação se disseminam em uma determinada associação envolvendo atores humanos e não humanos, no nosso caso, os objetos técnicos. 

Devemos pensar mais em distribuição da ação do que em uso, causa, estrutura. Bem, redes sociais é uma expressão hoje em moda para falar de relações mediadas por computador (como Facebook, Orkut, Twitter, Linkedin, entre outros). Nos anos de 1990, falávamos de comunidades virtuais. Hoje falamos de redes e softwares sociais. 

Devemos evitar tomar a consequência de uma determinada ação como causa de todas as outras que porventura possam ser similares. O problema, assim, não é achar uma essência, seja do sistema, seja de um objeto, seja de nós mesmos, desvinculando-os das relações pontuais. O interessante é a análise da particularidade de uma dada associação, das redes.

Qual a sua opinião sobre o monitoramento ao qual, indiretamente, o usuário da internet é submetido?

Essa é uma das questões mais importantes da atualidade. As mídias e redes sociais funcionam coletando dados, processando e minerando nossas informações, gerando perfis e ações em nosso nome. Nossos movimentos e ações são guardados para sempre e usados para o melhor (indicar coisas que queremos ler, comprar, ver) ou o pior (invasão de privacidade seja por empresas, governos ou pessoas). 

As redes sociais são máquinas de produção de trocas informacionais entre pessoas, sistemas, softwares, bancos de dados. Muitas pessoas não têm consciência de que seus dados são coletados, estocados, vendidos. Facebook, Foursquare, Twitter, Google, todos fazem isso. Precisamos compreender esse regime de monitoramento de dados e reforçar regimes jurídicos que protejam os cidadãos. 

O desafio é grande. Manter sistemas sociais que sempre são motivados pela dinâmica da privacidade e da confissão e, ao mesmo tempo, garantir a posse dos dados pelos usuários. A rede não esquece nada. Alguns defendem a necessidade de introduzir alguma forma de esquecimento dos dados. Isso seria vital para a sobrevivência dos sujeitos no futuro, assim como é fundamental para o equilíbrio psíquico que esqueçamos coisas que fizemos ou nos fizeram. No Brasil, um passo importante seria a aprovação do Marco Civil da Internet, que patina e não consegue aprovação na Câmara dos Deputados. 

O que podemos depreender do episódio que culminou no suicídio do jovem ativista americano Aaron Swartz, criador do RSS e da licença do Creative Commons? (Acusado pelo governo dos Estados Unidos de invadir computadores e roubar artigos científicos.)

Swartz era um hacker, um ciberativista que militava na longa tradição do movimento hacker, que fundou os princípios da microinformática e da internet. O lema “a informação quer ser livre”, dos primórdios do hacktivismo, é o que motiva ações atuais como as de Swartz e do Wikileaks. 

Swartz pagou um preço alto por ter tentado liberar artigos acadêmicos, que na sua maioria são produzidos com verbas públicas e vendidos por grandes editoras acadêmicas. A internet é um complexo ambiente sociotécnico de circulação de bens simbólicos, de dados, e é muito difícil controlar essa circulação. 

Muitos afirmam que essa dificuldade de controle de cópias e circulação é a maior contribuição da internet para o enriquecimento cultural e a disseminação do conhecimento. A cultura e o saber encontram nesse ambiente um dinamizador, já que ele potencializa a circulação e a produção de informação. 

A era da informação coloca desafios ao que era costume na era industrial: controlar a circulação, editar e filtrar as informações, controlar os bens simbólicos pelo controle de seus suportes materiais. O que podemos depreender da morte de Swartz é que o modelo da cultura de massa está com os dias contados e que precisamos reformular rapidamente mentes e regimes jurídicos da propriedade e direito de autor, para não ver cerceadas as inovações. 

Outra personalidade que ganhou visibilidade tendo como ferramenta a internet é a blogueira e ativista política Yoani Sánchez, oriunda do regime cubano. Qual a importância do uso político da internet nesse caso?

Tenho afirmado que os três princípios da cibercultura são: a liberação da emissão (qualquer um pode, com poucos recursos, emitir conteúdos em formatos escrito, sonoro ou imagético); a conexão generalizada em diversos sistemas telemáticos; e a reconfiguração sociocultural da indústria cultural massiva. 

Sempre que podemos emitir e nos conectar a outros de forma livre, reconfigurações emergem, sejam elas sociais, educacionais, culturais ou políticas. Vimos o uso das redes sociais e dos telefones celulares nas Filipinas, em Madri, em Londres, nos Estados Unidos e agora nos países árabes como uma ferramenta política importante no sucesso de levantes. 

Vimos o movimento Occupy Wall Street e o Wikileaks mostrando como a internet é uma ferramenta política importante devido, justamente, aos dois primeiros princípios. No caso de Yoani Sánchez, ela usa seu blog para criticar o regime de Cuba. 

Sem entrar no debate das razões, apoios ou motivações da blogueira, esse exemplo mostra que a internet pode ser efetivamente um instrumento político justamente pela possibilidade de emitir uma opinião que é lida pelo resto do mundo e que pode trazer reconfigurações importantes em uma determinada realidade social. 

O acesso irrestrito ao conhecimento científico, por meio da difusão livre de informações, é questão de tempo ou estamos distante disso?

Estamos diante disso, embora avanços devam ser implementados. Na minha área, a comunicação, todas as revistas acadêmicas brasileiras estão indexadas em bancos de dados com acesso público e gratuito. Noventa por cento das pesquisas feitas no Brasil são pagas com verbas públicas. Não faz sentido cobrar pelo acesso a essas obras. 

Acho que todas as áreas deveriam fazer esforços para atingir tal patamar. A publicação mundial ainda é dominada por grandes editoras que cobram caro (20, 30 dólares) para acessar um artigo em uma revista. Tenho vários artigos publicados em revistas indexadas nesses sistemas. Ganho uma cópia que não posso compartilhar. Meu último trabalho foi publicado em um livro que custa 160 dólares. 

Decidi não dar mais pareceres em revistas que cobram pelo acesso. Não somos remunerados para dar parecer nem para termos o artigo publicado. Isso é visto como um ganho simbólico. É de fato. Mas precisamos criar novos canais de prestígio e valoração simbólica sem que o leitor tenha que pagar caro por isso.

A internet é plural num sentido, mas também é guiada por grupos hegemônicos, como o Google e o Facebook. Há uma contradição nesse movimento?

Haveria contradição se a internet, criada em um regime capitalista e militar, fosse de outra forma. Ela é livre em países livres e controlada em países não democráticos. Está no círculo do capital e as empresas negociam com a liberdade do uso e fluxo distributivo da informação. O Google, o Facebook, a Amazon, a Apple estão criando ecossistemas para manter os usuários presos às suas empresas. 

Entretanto, há muitos serviços disponíveis que sequer pensávamos ter há 30 anos, como mapas gratuitos, estocagem de informação nas nuvens crescente, etc. As redes sociotécnicas estão vinculadas aos seus regimes, às suas formas de construir a sociedade. Não vejo contradição, a não ser que tomemos, erroneamente, a internet como um mundo à parte, como o mundo virtual fora do mundo real. Ela definitivamente não é isso.

Hoje em dia está cada vez mais restrito o acesso a downloads de músicas e estão surgindo alternativas de plataformas musicais que não necessitam dos downloads, por exemplo, os streamings. Esse é um caminho a ser adotado, pensando que o acesso à internet, principalmente em dispositivos móveis, está em expansão?

Acho que o streaming de música é um modelo de negócios que pode solucionar, para as grandes gravadoras, o problema dos downloads ilegais. As gravadoras têm colocado o streaming como uma solução para as questões do direito autoral. A chegada do Google nessa área tem sido vista como algo muito positivo para as gravadoras. Para o consumidor final acho que é uma solução legal, barata, cômoda, com a oferta de uma gama ampla de opções de músicas. 

Há notícias boas para as gravadoras, como o crescimento atual das vendas, e outras nem tão boas, o Spotify – programa que permite ouvir músicas gratuitamente – anunciando que iria restringir a oferta pelos altos custos de pagamento de royalties. O modo de consumo por streaming tem crescido mundialmente, fala-se em crescimento de 44%. 

Acho que haverá um crescimento dessa forma de consumo musical com a entrada de mais serviços no país. O interessante aqui é mesmo o princípio, que cresce em várias áreas da cibercultura: o consumo de informação nas nuvens. Penso que o importante não é ter todos os arquivos no meu laptop ou tablet, mas em um lugar onde possa acessá-los de qualquer dispositivo, em mobilidade.

Quando as ações dos chamados hackers são evidenciadas predomina o aspecto negativo. Existe um lado bom nessa atuação?

Sim, claro. Os hackers criaram a microinformática e a internet como conhecemos hoje, com protocolos abertos e livres. Eles foram responsáveis pela ideologia libertária da internet, alertaram sobre a falta de segurança das grandes empresas, sobre os vírus, a ciberguerra e o ciberterrorismo. 

São responsáveis pela expansão do consumo musical, de fotos e vídeos em sistemas abertos, hoje, em uso de forma planetária. São responsáveis pelo Wikileaks, por inovações nas leis que concernem à sociedade da informação em diversos países, pela militância em favor do acesso livre aos dados governamentais, o movimento Open Data. Agora, ações de terroristas, ladrões, pedófilos, traficantes só tem mesmo um aspecto: o negativo. Os verdadeiros hackers não fazem ações desse tipo. Tais figuras nefastas da cibercultura são chamadas de crackers. 

É possível concluir que na internet cada vez mais o público é tratado menos como massa e mais como nicho, possuidores de interesses específicos?

Sim, acho que essa é uma boa síntese. Ainda vivemos a tensão entre cultura de massa e cultura pós-massiva, de nicho. Mas a forma de ação em relação à informação mudou. Estar conectado é consumir, mas também produzir e distribuir informação, não de forma massiva, para uma audiência ampla, mas para as comunidades de interesse, os nichos de consumo. 

Isso pode ser interessante por um lado, como posicionamentos que questionam e enfraquecem o poder da edição da informação veiculada para uma massa, mas, por outro, cria o que Eli Pariser (ciberativista norte-americano) chama de filtro, bolhas, nichos que só encontram o que procuram, sistemas que personalizam a informação, pois acham que sabem o que os usuários mais querem. A informação massiva me mandava tudo. A informação pós-massiva, apenas o que quero. Temos que encontrar uma forma de estimular a serendipty, ou seja, o encontro alerta com o desconhecido, sem sucumbir à uniformização da cultura de massa.

Precisamos reforçar sistemas jurídicos que garantam a privacidade e o anonimato na rede. No Brasil, um passo importante seria a aprovação do Marco Civil da Internet, que patina e não consegue aprovação na câmara dos deputados”

“Noventa por cento das pesquisas feitas no Brasil são pagas com verbas públicas. Não faz sentido cobrar pelo acesso a essas obras”

“Acho que o streaming de música é um modelo de ?negócios que pode solucionar, para as grandes gravadoras, ?o problema dos downloads ilegais”


“Penso que o mais interessante não é ter todos os arquivos no meu laptop ou tablet, mas em um lugar onde eu possa acessá-los ?de qualquer dispositivo, em mobilidade”

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