quarta-feira, 14 de agosto de 2013

Lendo o leitor ou quem está lendo quem?

Quem lê livros em leitor eletrônico também está sendo lido

Gustavo Martins de Almeida | Publishnews
Imagem: The Guardian

Mais uma vez as mudanças tecnológicas que afetam aspectos cotidianos revolucionam a sociedade, causando enormes transformações. Direto ao ponto: quem lê livros em leitor eletrônico também está sendo lido, isto é, as informações referentes ao título adquirido (ou melhor, licenciado), velocidade da leitura, capítulo em que a leitura foi interrompida, marcação no texto, compartilhamento de trechos – e as observações a respeito – em redes sociais, tudo isso pode ser observado e registrado pelo fabricante dos aparelhos portáteis de leitura, os chamados e-readers.

A migração do livro físico para o aparelho de leitura eletrônico é uma via de duas mãos. Ao comprar o livro físico o leitor recebe 1 objeto e 1 direito; um caderno de papel impresso e encapado e o conteúdo correspondente ao texto ali registrado, e dele faz o uso que lhe convir, menos reproduzir o texto sem autorização. Adquirindo um leitor de textos, o consumidor – mais que nunca esse rótulo se agrega ao de leitor – pode adquirir licenças temporárias para leitura de textos (veja o artigo O Mundo das Nuvens) disponibilizados pelas editoras ou livrarias.

Só que os chamados e-readers – ou os programas que permitem a leitura de e-books, instalados em qualquer outro aparelho – registram as várias atividades do leitor, como horários e tempo de leitura, páginas e capítulos lidos, e em que velocidade, além de marcas e comentários.

A permissão de acesso a essas informações de leitura, e ainda o seu armazenamento e processamento, constam dos termos da política de privacidade divulgada pelos fabricantes, que todos dizem ter lido e aceito, marcando o quadrinho de concordância, mas que quase ninguém examina, no afã de querer aproveitar logo o gadget. Já, já vamos examiná-los.

Não estou dizendo que os fabricantes de leitores de livros estejam seguindo a cartilha de George Orwell, mas o fato é que inaugura-se, a exemplo dos efeitos da união do computador e internet, uma nova faixa de direção, onde antes havia praticamente mão única. O leitor-eletrônico deixa de ser o consumidor discreto de livros escritos, dos textos em suporte físico, aquele que adquire um bloco de papel encadernado e usufrui do conteúdo impresso nas páginas, marcando-as, eventualmente publicando críticas ou se dirigindo timidamente ao escritor.

O leitor passa, agora, a ser medido, observado, nos seus hábitos, tempos, desejos, prazeres e dissabores. Mas, afinal, quem é o leitor (?); o adquirente dos direitos de leitura e possuidor do aparelho, ou a tela que registra, não só os títulos licenciados para esse portador, como cada operação de mudança de página e o tempo decorrido para a leitura de cada capítulo?

Essas possibilidades, na verdade, esses direitos do fabricante dos aparelhos destinados a leitura de textos eletrônicos estão explicitados nos termos de privacidade de quem adquire, por exemplo, um e-reader Kobo ou Kindle. Basta ler:

Kobo: Podemos registrar informação sobre a sua utilização, tal como quando e quão frequentemente usa o serviço Kobo bem como informação que exiba ou na qual clique no âmbito do serviço Kobo (incluindo elementos UI, definições, e outras informações), e podemos partilhar esta informação com terceiros de confiança, incluindo os nossos editores ou outros fornecedores de conteúdos. Qualquer informação ou conteúdo pessoal que revele voluntariamente online (em comentários, revisões, etc.) torna-se disponível publicamente e pode ser recolhida e usada por outrem. Se contribuir para o serviço da Kobo, estará tornando qualquer palavra que publique pública. Se escrever alguma coisa, assuma que pode ficar conservado para sempre.” (Política de Privacidade da Kobo, última atualização em 04/05/2011).

Kindle 3. GeneralInformation Received. The Software will provide Amazon with data about your Kindle and its interaction with the Service (such as available memory, up-time, log files, and signal strength). The Software will also provide Amazon with information related to the Digital Content on your Kindle and Supported Devices and your use of it (such as last page read and content archiving). Information provided to Amazon, including annotations, bookmarks, notes, highlights, or similar markings you make using your Kindle or Reading Application, may be stored on servers that are located outside the country in which you live. Any information we receive is subject to the Amazon.com Privacy Notice.(Termos de Uso do Kindle, atualizado em 06.9.2012). {Tradução resumida: O software de leitura permitirá a Amazon identificar as informações de seu Kindle, conteúdo, forma de leitura, incluindo anotações, destaques e marcas, que podem ser armazenadas em servidores fora do seu país}.

Não estou dizendo que os fabricantes espionem individualmente os leitores (aliás, em julho de 2013 as notícias de espionagem no mundo abundam), e divulguem seus hábitos e “performances” de leitura. Mas o fato é que por meio do exame mais rápido e preciso do comportamento desse “consumidor” já há casos de editoras que permitem, a partir de determinado ponto de um livro, que o leitor escolha um dos três possíveis finais da obra, optando pelo texto a, b ou c.

O monitoramento mais próximo e direto do leitor é feito sem a espera dos demorados relatórios de venda das livrarias, ou da lista de best-sellers, funciona de imediato, é quase um censo permanente. A inovação causa certa surpresa, mas não chega a ser algo grave.

O que causa espanto é a pesquisa detalhada da Eletronic Frontier Foundation, entidade que alega defender os direitos no mundo digital, na qual são analisados diversos itens da política de divulgação de dados apurados na leitura de livros eletrônicos. Dentre vários outros consta, quando se indaga se as empresas fabricantes dos aparelhos de leitura podem compartilhar informações fora da companhia sem o consentimento do cliente, a informação de que entre nove mega-fabricantes, 6 responderam positivamente, dentre estas Kindle, Barnes & Noble, Kobo e Sony. Vale a pena ler os gráficos da pesquisa.

Ainda há muito terreno a ser ocupado na camada da relação direta e imediata de leitor/consumidor com a fabricante de leitores/editora, pois se o fabricante observa mais facilmente o leitor, este pode se expressar na mesma estrada, no sentido inverso. São novas formas de leitura, de crítica, enfim de expressão, que surgem, como blogs e outras obras coletivas, bem de acordo com o modelo fragmentado, quase pontilhista, da comunicação contemporânea.

Resumindo, falamos de gerenciamento de informações; quantidade, qualidade e acesso. Esse ativo contemporâneo, a informação, no caso das obras literárias permitirá identificar mais rapidamente o gosto e o hábito dos leitores, mas também facilita a expressão das reações do consumidor a respeito dos livros. Num país de escassos hábitos de leitura (pesquisa do IBGE publicada no Globo de 09.8 diz que o brasileiro de RJ, SP, e BH dedica 6 minutos (!) por dia a leitura) essas mudanças são positivas. Em paralelo, cresce a importância do leitor no eixo da cadeia produtiva literária, entre o autor e o editor, passando a figurar na ponta do consumo de modo bem mais visível, ampliado pelas lentes dos e-readers.

Mais uma vez a tecnologia subverte a ordem (Gutenberg inovou com o suporte físico, que agora é sacudido), o que espanta a geração de imigrantes do meio analógico para o digital. Para os adolescentes não há nada de novo, e para quem quer se manter reservado, o livro de papel continuará disponível por muito tempo.


+

Digital reading: not so discreet after all…E-readers are virtual gold mines for data-hungry corporations. So should we be worried?

Nenhum comentário:

Postar um comentário