quinta-feira, 24 de outubro de 2013

Douglas Adams: “um livro é como um tubarão”


Livros são difíceis de destruir, resistentes a banheiras, movidos a energia solar, e dá gosto ter um nas mãos; os livros são ótimos em ser livros

por André Forastieri | R7

Acostumo lentamente a ler em tablet e smartphone. Artigos, ensaios, não-ficção. Para histórias inventadas, o papel continua tendo mais poder sobre mim. Com o tempo mudarei, quem sabe. Hoje, a tela e seus toques e possibilidades me distraem. Ficção requer imersão. E paixão.

Anos atrás comprei um Kindle, um dos primeiros. A ideia era sedutora: uma engenhoca em que eu poderia comprar livros gringos instantaneamente, gastando menos, e carregar todos comigo por aí. Comprei uns dez livros. Não acabei nenhum. A falta de massa, de presença física, facilitava que eu ignorasse aqueles milhões de letrinhas. Abandonei. Dei para alguém o Kindle. Hoje percebo que meu erro foi comprar ficção.

Mas continuo fã do Kindle, e clientão da Amazon. Comprei meu primeiro tablet há três meses, um iPad. Uso comedidamente, até porque meu filho tende a monopolizar o bicho, tagarelando via Skype com os amigos enquanto assiste o YouTuber do momento. Recentemente descobri um aplicativo chamado Send to Kindle. É mais que uma mão na roda, é uma nova maneira de devorar conteúdo da web. Você baixa e instala no seu browser. Fica um botãozinho com o K de Kindle lá. Quando você está em uma página qualquer da web, e tromba com aquele artigão comprido que você quer ler mas não tem tempo agora, ou está com preguiça, é só clicar no botão do Send to Kindle.

Plim! O artigo é enviado para o seu tablet, e salvo em formato de texto limpinho, sem banners, pop-ups, links e tal. Tá lá pra sempre, na sua biblioteca. Naturalmente, você precisa ter um Kindle, ou um tablet qualquer. E baixar o aplicativo Kindle para o seu tablet Apple, Android ou Windows. Agora leio meu Guardian de cada dia no celular, no metrô e ônibus. Coisa simples que enriquece a vida.

O que não me pega de jeito nenhum em tablet é gibi. A tela é pequena e mostra uma página por vez. Depois de 42 anos vendo ao mesmo tempo duas páginas, com desenhos em formato grande, e letras em tamanho legível, não tenho a menor vontade de mudar. E como ando especialmente seletivo com gibi (por quê? Não sei), a torrente de lançamentos semanais não me seduz.

Esses dias estive na casa do Miranda, amigo querido que compartilha comigo a tara por quadrinhos. As paredes da sala dele são ocupadas de cima a baixo por estantes cheias de álbuns, graphic novels, revistas. Só finesse. Dá gosto só de estar ali, vendo aquelas lombadas, cercado de histórias absurdas, imagens incríveis, papel cheiroso. Eu queria ter um ano numa dimensão paralela para ler tudo que está ali, sem pressa, offline, pernas pro ar. E sempre que vou lá ele me dá algum gibi que agora tem encadernado, ou que comprou repetido. Como esse, desenho delicado, argumento embasbacante: Red Handed, do Matt Kindt. Quem tem amigo tem tudo.

Pode ser que quando apareceram tablets bem leves, como esse novo iPad Air, e com telas bem grandes, eu me convença. Mas como dizia Douglas Adams, e Neil Gaiman lembrou esses dias, um livro é como um tubarão. Os tubarões já estavam nos oceanos antes dos dinossauros existirem. E a razão porque eles sobrevivem até hoje, essencialmente os mesmos, é porque os tubarões são excelentes na missão de serem tubarões. Os livros, lembra Gaiman, são "difíceis de destruir, resistentes a banheiras, movidos a energia solar, e dá gosto ter um nas mãos; os livros são ótimos em ser livros." Fato, e eu completaria: os livros podem ser rabiscados, colocados na estante, guardados para seu filho algum dia ler, emprestados para um amigo nunca mais devolver, dados para uma pessoa querida, vendidos para um sebo... e muito mais.

O Brasil tem uma novidade excelente para quem ama livros, uma coisa que eu esperava desde sempre: livros baratos. Me fiz leitor de verdade, onívoro, dos 17 aos 23 anos, matando aula da faculdade e destruindo pockets em inglês, 400 páginas a U$ 3,99. Uns 100% dos livros publicados em inglês tem versão em formatinho, a preço de refrigerante. Inclusive Douglas Adams - li tudo que ele escreveu em papel vagabundo, começando pelo meio, So Long And Thanks for All The Fish. Claro que eu já lia nos anos 70 os pockets infantojuvenis da Ediouro, e pouco depois a melhor ficção científica do mundo com sotaque lusitano, na coleção Europa-América. Um dia Robert Heinlein, no outro Brigitte Montfort!

O pocket é o formato editorial inclusivo e democrático por excelência, mas no Brasil demorou para vingar. Foi com a megacoleção da LP&M. Só ali já tem leitura para uma vida (as traduções de Shakespeare são uma delícia, algumas por Millôr Fernandes). Agora todas as principais editoras têm suas séries de livros em formatinho, de todo tipo, pra todo leitor, coisas incríveis. Inclusive a Penguin, inventora do formato, prazer ver livros brasileiros com o selo do pinguinzinho, pela Companhia das Letras. Muitos já saíram em formato grande e caro, outros tantos estão saindo pela primeira vez direto em formato pequeno. É minha nova velha mania. Se entro em uma livraria, vou direto onde estão os pockets. A L&PM bolou uma genial: a coleção 64, só com livros de 64 páginas, sempre por cinco reais.

Nas últimas semanas, dois pequenos notáveis: Sobre a Amizade e Outros Diálogos, antologia de papos radiofônicos entre Jorge Luiz Borges e Osvaldo Ferrari. E Onde Encontrar a Sabedoria?, de Harold Bloom, que sorvo agora (originalmente R$ 52,90 em formato tradicional, paguei R$ 19,90 pelo formatinho). Mais que leituras agradáveis e enriquecedoras, os livrinhos são amigos que me acompanham na mochila, na pasta, na cama e no final de semana. Delícia ver e rever a capa com Borges descabelado, o estrabismo fitando um Aleph? Sua companhia me fez pensar que deveria escrever sobre este livro, o que faço agora, por vias tortíssimas. Será que eu sentiria o mesmo, se tivesse lido em formato digital? Por enquanto, não. Elétrons me bastam para o trabalho. Para o prazer, ainda sou amante dos átomos.

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