sexta-feira, 11 de outubro de 2013

Infância Conectada




As tecnologias digitais fazem parte do cotidiano das crianças e modificam o modo como elas se relacionam com o mundo, brincam e adquirem conhecimento
Revista e

A infância do século 21 é ímpar na história da humanidade. No contexto das tecnologias de informação e comunicação, globalização econômica e mundialização da cultura, segue longe o tempo em que os pequenos tinham de crescer para ser levados em conta. Entre outras características, essa parcela da população hoje é composta de nativos digitais, com um modo de percepção, aprendizagem e expressão audiovisual, além de serem mais participativos, reflexivos e buscarem um novo protagonismo. É pouco? Pois bem, outra mudança fundamental diz respeito ao estatuto da criança e do adolescente. Pela primeira vez, em séculos de lutas sociais, esses indivíduos possuem direitos civis iguais aos dos adultos e uma condição privilegiada de pessoas com direitos, mas sem deveres ou responsabilidades, afirma a pesquisadora das inter-relações entre as mídias e os processos educacionais da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) Maria Luiza Belloni, autora de Crianças e Mídias no Brasil: Cenários de Mudança (Papirus, 2010), entre outros livros.

O processo de formação das novas gerações é, evidentemente, estimulado e fortalecido pelo acesso às mídias. Porém, Maria Luiza ressalta que as mudanças na infância de hoje são fruto não apenas da era digital, mas sim de uma evolução que culmina com a criação da televisão e tem como base o desenvolvimento de técnicas que possibilitam o registro e a reprodução de sons e imagens fixas e em movimento. Isso se dá a partir da segunda década do século 19, em pleno desenvolvimento da imprensa. Nessa época, ocorre uma revolução técnica muito importante para a cultura atual: a invenção da fotografia, do fonógrafo e do cinema. “Essa evolução técnica está na origem da cultura audiovisual que tomou conta do planeta através do cinema e da televisão de massa”, analisa. “Portanto, é bom lembrar que, antes de serem nativos digitais, os seres humanos foram e ainda são nativos audiovisuais, e esta é a característica fundamental da cultura do século 20.”

A rotina das crianças também sofreu alterações, já que o tempo livre foi praticamente suprimido. Se antigamente passavam horas brincando entre si, sem a presença de adultos, exercitando livremente a imaginação, experimentando o poder, criando histórias e personagens, inventando regras do jogo, hoje grande parte delas estão o tempo todo ligadas a algum gadget eletrônico que lhes apresenta conteúdos, histórias, personagens e regras, criado por adultos com objetivos econômicos. “Ou seja, por um lado as novas gerações adquiriram novos direitos e um novo lugar na sociedade, mas por outro elas perderam muito da liberdade criativa e ingênua que lhes permitia escapar da influência avassaladora da sociedade adulta”, diz Maria Luiza.

Além disso, o acesso às tecnologias de informação e comunicação tende a gerar um abismo tecnológico entre as gerações, principalmente nas famílias com acesso domiciliar à internet, nas quais as crianças e adolescentes são, em geral, os maiores usuários. Como consequência, há uma inversão dos papéis tradicionais nas relações entre o adulto-que-sabe e a criança-que-não-sabe, gerando mal-estar nas famílias e nas escolas. Cria-se uma nova espécie de diversidade cultural intergeracional e interclasses, já que os jovens muitas vezes estão mais informados, via redes sociais e outras ferramentas. Observa-se também uma diferença ética, na compreensão de mundo, nas formas de percepção e, portanto, de aprendizagem.

Aprendizagem interativa
Os aparatos tecnológicos ocupam cada vez mais espaço no cotidiano das crianças e modificam o modo como elas exercem sua sociabilidade, brincam e adquirem conhecimento. O modelo tradicional de ensino, centrado na figura do professor como transmissor dos saberes, vem dando lugar a um formato colaborativo de construção de conhecimento. “Os alunos aprendem em redes interativas, trocando informações instantaneamente e criando, assim, seus próprios percursos de aprendizagem”, esclarece a pesquisadora na área de educação infantil, processos de ensino-aprendizagem e representações sociais da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) Viviane Bona. Para a especialista, modelos mais autônomos e interativos são proporcionados por essas novas tecnologias e, consequentemente, diferentes formas de aprendizagem surgem no atual cenário.

De acordo com a professora do Departamento de Educação da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) Gilda Helena Bernardino de Campos, o grande desafio da educação hoje é criar situações didáticas que incorporem as tecnologias digitais da informação e da comunicação no currículo escolar. “Espera-se que o professor saiba criar estratégias didáticas para que o aluno desenvolva funções cognitivas, tais como buscar e selecionar as informações, resolver problemas e assim construir seu conhecimento de forma mais ativa e colaborativa”, diz a pesquisadora, que também é responsável pela Coordenação Central de Educação a Distância (CCEAD) da PUC-Rio. “O impacto das tecnologias digitais na educação é irreversível, muda-se o foco de ensino para a aprendizagem, mudam as atividades, os exercícios e a forma de encarar a sala de aula.”

Embora a televisão e o rádio tenham mais de 50 anos de presença e grande influência social no país, a realidade da escola pública no Brasil continua baseada na cultura da linguagem escrita, afirma Maria Luiza. “A incorporação crítica e criativa de elementos da cultura audiovisual e das mídias digitais deve ser um dos principais objetivos da escola pública hoje, pois eles já estão totalmente integrados à vida cotidiana da maioria das crianças e adolescentes”, acrescenta. “As culturas infantis e juvenis são saturadas de imagens e de sons organizados em sistemas de significação ultrassofisticados, que engendram novos modos de perceber e de aprender. Hoje, todos podemos ser produtores de mensagens, mas as escolas públicas brasileiras não criam condições para que as crianças se apropriem dessas técnicas numa nova perspectiva e não na lógica industrial que rege a produção de massa.” Segundo a especialista, as mídias podem ainda funcionar como importantes ferramentas de melhoria da qualidade da educação na escola pública, especialmente nesta passagem da escola de meio turno para uma de tempo integral.

Renovação nas classes

O mundo digital transformou os processos de ensino-aprendizagem e gerou forte impacto nas escolas

As mutações tecnológicas exigem do indivíduo competências comunicacionais e modos de construção do saber (aprender a aprender e a reaprender constantemente) impensáveis décadas atrás, além de conhecimento sobre o mundo contemporâneo e diversidade humana na cultura mundializada. De acordo com a pesquisadora das inter-relações entre as mídias e os processos educacionais da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e autora, entre outros, do livro Crianças e Mídias no Brasil: Cenários de Mudança (Papirus, 2010), Maria Luiza Belloni, as crianças chegam à escola com conhecimentos e aptidões desenvolvidos fora dela e à sua revelia, que normalmente são ignorados pelos professores, provocando dificuldades de comunicação. “Daí a necessidade urgente de renovar a formação dos docentes, integrando este enorme desafio de compreender as novas formas de perceber e de aprender que os alunos desenvolvem, desde muito jovens, no contato com as tecnologias digitais, dentre as quais se destacam: os modos autônomos e colaborativos de aprender e a capacidade de processar múltiplas informações ‘em paralelo’”, afirma.

A passagem da comunicação de massa, em que somos apenas espectadores, à comunicação interativa, em que podemos ser produtores de mensagens, foi a grande revolução técnica no século 21. Por isso, as possibilidades de interatividade virtual mediada por esses dispositivos técnicos digitais estão transformando as culturas infantojuvenis, desafiando e exigindo da escola e das famílias novas respostas e soluções.

Nesse contexto, Maria Luiza acredita que o papel da educação deve ser, além de propiciar a apropriação crítica e criativa das novas linguagens de modo a estar em sintonia com as culturas dos jovens, desenvolver metodologias inovadoras de uso pedagógico desses meios. Além disso, democratizar o acesso às tecnologias, já que no Brasil ainda há grandes desigualdades sociais nesse acesso. “A escola do futuro deveria ser então uma escola que ensinasse a aprender, em vez de transmitir conteúdos, com projetos interdisciplinares, aprendizagens interpares, uso intensivo de tecnologias e uma presença muito importante de aprendizagens de ciências, artes e esportes”, diz a pesquisadora. “Ou seja, uma combinação equilibrada e inteligente de inovação pedagógica e técnica, com a finalidade de formação do sujeito autônomo, capaz de aprender ao longo da vida, nesta sociedade saturada de máquinas cada vez mais inteligentes.”

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