sábado, 15 de fevereiro de 2014

Faz sentido pagar uma assinatura para alugar ebooks?

Confira a detalhada análise de Liliana Giusti Serra sobre os serviços estrangeiros do tipo “Netflix” de ebooks, e a comparação destes com os serviços oferecidos das bibliotecas.

Liliana Giusti Serra | Revolução eBook


No final de 2013 foi anunciado o serviço de aluguel de livros, com ebooks oferecidos em nuvem, mediante uma assinatura. Cunhado pela revista Wired como o Netflix dos livros, visto como uma novidade e, de certo modo, aguardado pelos consumidores, fico questionando qual a função de um serviço dessa natureza quando existem bibliotecas que permitem a leitura de livros de forma gratuita. Não que as bibliotecas sejam as únicas fontes de consulta de publicações – isso pode ser realizado em livrarias (físicas ou virtuais) e editoras. Evidentemente existe espaço para novas iniciativas no mercado editorial, porém por que não utilizar os serviços existentes oferecidos por bibliotecas (universitárias, escolares, públicas, corporativas etc.) para realizar o empréstimo (e não aluguel) de obras? Várias respostas podem ser dadas para esse questionamento. Em primeiro lugar, cabe identificar os serviços de assinatura de livros que são oferecidos atualmente pela Amazon, Scribd, Oyster Books e Entitle.

Aluguel de livros? Os serviços “Netflix” de livros

A Amazon possui um programa próprio de empréstimo de livros eletrônicos, o Kindle Owners’ Lending Library. Por meio desse programa os clientes que possuem Kindles e fazem parte do serviço Prime shipping tem acesso para realizar empréstimos gratuitos de mais de 350 mil títulos de ebooks. Os leitores podem emprestar um livro por mês, sem data para devolução. Outro título somente poderá ser consultado com a devolução do ebook emprestado. Essa modalidade de empréstimo é realizada apenas com proprietários de e-readers Kindle, independente do modelo, excluindo os leitores que se utilizam de tablets para realizar a leitura digital e, claramente, visa estimular a venda desses dispositivos aos seus clientes. O serviço de empréstimo de ebooks não está disponível na loja brasileira até o momento.

O Scribd anuncia-se como a maior biblioteca digital do mundo ao permitir a leitura através de dispositivos móveis a mais de 40 milhões de títulos e documentos. Lançada em 2007 e baseada em San Francisco (CA), parte das publicações são de acesso gratuito (maior que a Library of Congress!), além do serviço de assinatura que permite acessar quantidade ilimitada de ebooks ao custo de US$ 8,99 mensais. Conta com nomes fortes do mercado editorial e oferece o serviço para usuários das plataformas iOS ou Android. A obra mais lida no Scribd é “O Alquimista”, de Paulo Coelho, em sua versão em inglês. A oferta de títulos em português é pequena. Inicialmente era uma rede de compartilhamento de arquivos e diversos casos de pirataria foram relatados. Os títulos não licenciados foram retirados e buscam a inclusão de novas obras em parcerias com editores.

O Oyster Books, baseado em New York (EUA), conta com mais de 100 mil títulos e a assinatura, restrita aos Estados Unidos, é permitida somente para usuários da plataforma iOS ao custo de US$ 9,95 mensais. Utiliza-se de conceitos de rede social, permitindo a interação entre os leitores, como dicas de leituras e sugestões de livros. Conta com um conjunto de editores parceiros e anuncia que novos acordos e inclusão de conteúdos são realizados regularmente. O serviço oferece 30 dias de teste antes de realizar a assinatura, permitindo aos leitores degustarem os títulos existentes e a própria experiência da leitura digital.

O Entitle, com sede na Carolina do Norte (EUA), oferece assinatura de livros, porém com o diferencial que, caso a assinatura seja cancelada, os ebooks baixados não serão apagados do equipamento dos leitores e estarão disponíveis enquanto o aplicativo de leitura estiver instalado no dispositivo. O serviço pode ser contratado por planos: 2 ebooks ao mês ao custo de US$ 14.99; 3 ebooks por US$ 21.99 ou 4 ebooks ao mês, por US$ 27.99. A assinatura é realizada mediante a apresentação de um leitor usuário. Ao realizar indicações os leitores ganham créditos de US$ 5,00 a cada adesão confirmada. Possui período de testes de uma semana antes de iniciar a cobrança do serviço. Os ebooks podem ser baixados em Nook, Kobo, Sony Reader, além de APP para plataforma iOS, Android e para o Kindle Fire. Utiliza a ferramenta de DRM da Adobe. Possui serviços de indicação de livros com base nas leituras realizadas, sugerindo títulos regularmente aos leitores. Possui mais de 125 mil títulos disponíveis e a inclusão de novas obras é realizada diariamente. O serviço é oferecido apenas nos Estados Unidos, mas, como os demais fornecedores, pretendem ampliar os limites geográficos.

A lucratividade do Scribd e Oyster está centrada na utilização dos ebooks. Editores e autores receberão remuneração proporcional às páginas consultadas. Segundo dados divulgados pelo Scribd, apenas 2% dos assinantes leem mais do que 10 livros ao mês. No Oyster, quando um usuário lê mais do que 10% do livro, a remuneração ao autor e editor é realizada como se o livro completo tenha sido lido. No Scribd, a remuneração aos editores e autores é mais complexa: quando a leitura realizada é maior que 10% porém menor que 50% é recolhido o equivalente a um décimo do valor do ebook. Se a obra for lida em mais do que 50%, o pagamento será integral. A receita virá dos leitores que não realizam leituras completas, visto que boa parte dos usuários consultam trechos ou capítulos. Ainda existe certa desconfiança dos editores em aderirem a esse modelo de negócios, porém o engajamento da HarperCollins pode vir a reforçar a participação. Para acessar os serviços é necessário utilizar a internet e realizar o download dos livros, mas a leitura é realizada de forma off-line, com os ebooks disponíveis para consulta a qualquer momento, em qualquer lugar, baixados no dispositivo do leitor, por prazo indeterminado, sem expirarem ou serem removidos dos equipamentos. O formato do Entitle pode ser visto como conteúdo licenciado, uma vez que o ebook pertence ao leitor após a realização do download. Com valores acima dos praticados pelos concorrentes, diferencia-se pelo serviço personalizado que fornece, com algumas características de clube de leitura, sugerindo títulos e permitindo interação entre os leitores, todos com adesão realizada por indicação. O serviço de empréstimo da Amazon não tem como objetivo vender ou cobrar mensalidade dos leitores, mas estimular a venda do dispositivo Kindle e conhecer os hábitos de leitura para, a partir desses, oferecer sugestões para aquisição. Os hábitos de leitura dos usuários serão distribuídos a parceiros (editores e autores) e redes sociais, na forma de estimular que obras sejam lançadas de acordo com o interesse do público, conhecendo detalhes dos hábitos de leituras até então inimagináveis.

Mas o que esses serviços têm a oferecer que não podem ser encontrados em bibliotecas?

Primeiramente as bibliotecas ainda encontram dificuldades para inclusão de conteúdo digital aos seus acervos. Nos Estados Unidos e Europa a situação já evoluiu, porém avanços e ajustes ainda são necessários. A inclusão de ebooks iniciou-se nas bibliotecas universitárias e depois nas públicas, corporativas e escolares. As bibliotecas públicas encontraram grande resistência do mercado editor e fornecedores para oferecerem ebooks em seus catálogos, com o temor que ao disponibiliza-los nos OPACS (Online Public Access Catalogue), os mesmos seriam copiados e distribuídos indiscriminadamente. Ainda existem restrições como a quarentena para liberação de lançamentos ou preços diferenciados quando o comprador é uma biblioteca, mas o cenário é favorável se comparado com o ocorrido há poucos anos.

Outra questão que deve ser ressaltada é o alto custo para aquisição dos ebooks. Se o modelo de negócio escolhido para compra for o aquisição perpétua, os valores dos livros eletrônicos são um pouco mais baratos que as versões impressas, o que tem feito muita biblioteca questionar até que ponto vale a pena investir em acervos digitais, principalmente devido a suas implicações de acesso e gestão. Se a compra for realizada por assinatura, a complexidade também é presente, com a preocupação de custos crescentes para manter os títulos assinados ao catálogo, ocorrendo a substituição ou adição de novos títulos, editores ou autores a cada renovação. Também deve ser analisado o investimento contínuo realizado pelas instituições, sem que isso represente em aumento do patrimônio ou de oferta de títulos. Se a assinatura não for renovada, a biblioteca (e os usuários) perderão o acesso aos títulos.

No Brasil a situação é ainda mais complicada. Poucas bibliotecas contam com ebooks licenciados. Isso é decorrente da escassez de fornecedores, ao desconhecimento das possibilidades existentes de utilização dos ebooks, ao fato que poucos usuários de bibliotecas possuem dispositivos de leitura, que a própria biblioteca não sabe como adquirir ou utilizar os livros eletrônicos e dispositivos, o alto preço dos ebooks, limitações de acesso impostas por ferramentas de DRM, uso de plataformas proprietárias entre outros fatores. Seguindo o que ocorreu nos Estados Unidos e Europa, a compra de ebooks por bibliotecas brasileiras – nos modelos de negócios por aquisição perpétua ou assinatura – é realizada pelas universitárias nas esferas públicas e privadas. Não são conhecidos casos de bibliotecas públicas que já se utilizam de conteúdo licenciado. Nessas unidades as iniciativas existentes de inclusão dos recursos são realizadas com obras de domínio público ou de acesso aberto. As bibliotecas corporativas realizam assinaturas de bases de dados específicos e sua utilização é restrita ao ambiente da empresa, facilitando a gestão dos recursos. Um fato recorrente observado é que, mesmo adquirindo ebooks, as bibliotecas não realizam divulgação ou treinamentos sobre como utiliza-los, o que acaba não estimulando o usuário que, consequentemente, não utiliza o recurso. Ao não existir retorno de um investimento as possibilidades de renovação são diminuídas, não justificando o aporte realizado, resultando em desperdício de recursos.

Caso as bibliotecas públicas encontrassem flexibilidade para inclusão de ebooks em suas coleções a oferta de serviços de assinaturas de livros não estariam crescendo tanto. Bibliotecas não alugam livros, mas os emprestam, sem cobrança de taxas ou valores de adesão. Algumas instituições realizam cobrança de multas caso a entrega de publicações seja realizada com atraso, mas esse fato é inexistente com ebooks, uma vez que, após o prazo de empréstimo estabelecido, os mesmos retornam automaticamente ao acervo. As obras podem ser consultadas por intervalos de uma semana em média, com a possibilidade de renovação caso não existam reservas. ebooks também não são danificados, não tem páginas arrancadas, não são rabiscados ou sofrem ação por má utilização, a exemplo do que ocorre com acervos físicos.

Não seria interessante ao mercado editorial e fornecedores o caminho da flexibilização da oferta de ebooks para bibliotecas, permitindo que os mesmos fossem consultados por diversos dispositivos (como prometem os serviços por assinatura de livros), diminuindo as restrições de uso e tornando as obras acessíveis nos catálogos? As bibliotecas sempre atuaram como parceiros dos editores, realizando compras significativas e permitindo o acesso aos livros de forma gratuita. Em muitos casos pode, inclusive, estimular a compra, com os usuários tomando conhecimento das obras através das bibliotecas. Até que ponto é interessante criar um novo modelo ao invés de desenvolver um já existente e consolidado? Aparentemente as empresas de assinatura de livros estão conquistando espaço e atraindo clientes nos Estados Unidos. Se esse ritmo será observado no Brasil é uma aposta mais complexa de ser feita. Ainda encontramos resistência por parte do brasileiro em realizar leituras e quando transportamos essa realidade ao ambiente digital o desafio é ainda maior, com a falta de acesso à internet, dificuldade para aquisição de dispositivos de leitura e o próprio estimulo ao hábito da leitura. De acordo com a pesquisa Retratos da leitura no Brasil, realizada pelo Instituto Pró-Livro em 2011 e divulgada em março de 2012, o brasileiro lê, em média, 4 livros por ano. Nessa mesma pesquisa observa-se que os livros são comprados (mas não significa que são lidos) ou emprestados. A utilização de bibliotecas caiu quase 10 pontos se comparado com a pesquisa realizada em 2007. Ou seja, a julgar por esses números, a aderência a um sistema de assinatura de livros proposto pelas empresas não teria grande espaço, a não ser o restrito a universitários, empresas e algumas escolas da rede privada. Os serviços de aluguel de livros não substituirão as atividades desenvolvidas por bibliotecas, mas resta saber até que ponto é interessante investir em movimentos como esse que vendem serviços que podem ser oferecidos de forma gratuita.

Referências bibliográficas
AMAZON. Kindle Owners’ lending library. Disponível em: http://www.amazon.com/gp/feature.html?/docld=1000739811. Acesso em: 21 nov. 2013.
CAPELAS, Bruno. Serviços de leitura online querem ser ‘Netflix dos livros’. O Estado de São Paulo. São Paulo, 04 nov. 2013. Economia & Negócios, p. 10-10. Disponível em: http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,servicos-de-leitura-online-querem-ser-netflix-dos-livros,1092944,0.htm. Acesso em: 26 dez. 2013.
INSTITUTO PRÓ-LIVRO (Brasil). Retratos da leitura no Brasil: 3ª edição. 2012. Disponível em:
http://www.prolivro.org.br/ipl/publier4.0/dados/anexos/2834_10.pdf. Acesso em: 26 dez. 2013
STREITFELD, David. As New Services Track Habits, the ebooks Are Reading You. The New York Times. New York, 24 dez. 2013. p. 1-1. Disponível em: http://www.nytimes.com/2013/12/25/technology/as-new-services-track-habits-the-ebooks-are-reading-you.html?_r=1&et_mid=654227&rid=240989477. Acesso em: 26 dez. 2013.

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