quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

Mario Vargas Llosa e os livros eletrônicos


Uma última curiosidade, hoje universal: os livros de papel sobreviverão ou os livros eletrônicos acabarão com eles? Os leitores do futuro serão leitores apenas de tablets digitais? No momento em que escrevo estas linhas, o e-book ainda não se impôs, e na maior parte dos países o livro de papel continua sendo o mais popular. Mas ninguém pode negar que a tendência é de que aquele vá ganhando terreno sobre este, a ponto de não ser impossível vislumbrar uma época em que os leitores de livros na tela sejam a grande maioria, e os do papel fiquem reduzidos a ínfimas minorias ou até desapareçam.

Muitos desejam que isso ocorra o quanto antes, como Jorge Volpi, um dos principais escritores latino-americanos das novas gerações,(13) que celebra a chegada do livro eletrônico como “uma transformação radical de todas as práticas associadas à leitura e à transmissão do conhecimento”, algo que — garante — dará “o maior impulso à democratização da cultura dos tempos modernos”. Volpi acredita que muito em breve o livro digital será mais barato que o de papel, e que é iminente o “aparecimento de textos enriquecidos já não só com imagens, mas também com áudio e vídeo”. Desaparecerão livrarias, bibliotecas, editores, agentes literários, revisores, distribuidores, e só ficará a saudade de tudo isso. Esta revolução — diz ele — contribuirá de maneira decisiva “para a maior expansão democrática vivida pela cultura desde... a invenção da imprensa”.

É muito possível que Volpi tenha razão, mas essa perspectiva, que o entusiasma, a mim e a mais alguns, como Vicente Molina Foix,(14) angustia. Diferentemente de Volpi, não acredito que a troca do livro de papel pelo eletrônico seja inócua, simples troca de “envoltório”, mas também de conteúdo. Não tenho como demonstrá-lo, mas desconfio que, quando os escritores escreverem literatura virtual, não escreverão da mesma maneira que vieram escrevendo até agora, pensando na materialização de seus escritos nesse objeto concreto, táctil e durável que é (ou nos parece ser) o livro. Algo da imaterialidade do livro eletrônico contagiará seu conteúdo, como ocorre com essa literatura canhestra, sem ordem nem sintaxe, feita de apócopes e gíria, às vezes indecifrável, que domina no mundo de blogs, twitter, facebook e outros sistemas de comunicação através da rede, como se seus autores, ao usarem esse simulacro que é a ordem digital para se expressar, se sentissem libertos de qualquer exigência formal e autorizados a atropelar a gramática, o bom senso e os princípios mais elementares da correção linguística. A televisão até agora é a melhor demonstração de que a tela banaliza os conteúdos — sobretudo as ideias — e tende a transformar em espetáculo (no sentido mais epidérmico e efêmero do termo) tudo o que passa por ela. Minha impressão é de que literatura, filosofia, história, crítica de arte, sem falar da poesia, em suma, todas as manifestações da cultura escritas para a rede serão sem dúvida cada vez mais de entretenimento, ou seja, mais superficiais e passageiras, como tudo o que se torna dependente da atualidade. Se for assim, os leitores das novas gerações dificilmente estarão em condições de apreciar tudo o que valem e significaram certas obras exigentes de pensamento ou criação, pois elas lhes parecerão tão remotas e excêntricas como o são para nós as disputas escolásticas medievais sobre os anjos ou os tratados de alquimistas sobre a pedra filosofal.

Por outro lado, segundo se depreende de seu artigo, ler, para Volpi, consiste apenas em ler, ou seja, em inteirar-se do conteúdo do que é lido, e não há dúvida de que esse é o caso de muitíssimos leitores. Mas, na polêmica com Vicente Molina Foix que seu artigo gerou, este último lembrou a Volpi que, para muitos leitores, “ler” é uma operação que, além de informar sobre o conteúdo das palavras, significa também, e talvez principalmente, gozar, saborear aquela beleza que, tal como os sons de uma linda sinfonia, as cores de um quadro insólito ou as ideias de uma argumentação aguda, é emitida pelas palavras unidas a seu suporte material. Para esse tipo de leitor ler é, tanto quanto uma operação intelectual, um exercício físico, algo que — como diz muito bem Molina Foix — “acrescenta ao ato de ler um componente sensual e sentimental infalível. O tato e a imanência dos livros são, para o aficionado, variações do erotismo do corpo trabalhado e manuseado, uma maneira de amar”.

Custa-me imaginar que os tablets eletrônicos, idênticos, anódinos, intercambiáveis e funcionais a mais não poder, consigam despertar esse prazer táctil prenhe de sensualidade que os livros de papel despertam em certos leitores. Mas não é de surpreender que, numa época entre cujas proezas esteja a de ter acabado com o erotismo, também se desvaneça esse hedonismo refinado que enriquecia o prazer espiritual da leitura com o prazer físico de tocar e acariciar.


13 V. seu artigo “Réquiem por el papel”, El País, 15 de outubro de 2011.
14 V. sua resposta a Volpi, “El siglo XXV: una hipótesis de lectura”, El País, 3 de dezembro de 2011.

Trecho do livro "A civilização do espetáculo: uma radiografia do nosso tempo e da nossa cultura", de Mario Vargas Llosa (2012)

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