quarta-feira, 15 de abril de 2015

Colaboração do céu

Nascida no Brasil, a plataforma Google Earth Engine é utilizada na elaboração de mapas sobre vários temas a partir de imagens de satélite

Yuri Vasconcelos | Revista Fapesp


© Lucas Cavalcante / USP
Região agrícola da cidade de Bakersfield, na Califórnia, nos Estados Unidos: máscara vermelha mostra plantações de algodão


Em novembro de 2013, o cientista Matthew Hansen, da Universidade de Maryland, nos Estados Unidos, publicou na revista Science o primeiro mapa digital em alta resolução da cobertura florestal de todo o planeta e as transformações sofridas por ela entre 2000 e 2012. No fim do ano passado, foi a vez de pesquisadores do Joint Center Research da União Europeia revelarem um mapeamento completo das fontes de água da Terra, feito a partir de imagens de satélite em um nível de detalhamento nunca visto. E, a partir de 2012, o Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), uma organização ambiental com atuação na região Norte do país, passou a divulgar alertas mensais de desmatamento e degradação da Floresta Amazônica. As três iniciativas usam uma plataforma tecnológica desenvolvida pelo gigante norte-americano Google, chamada Earth Engine, cujo projeto nasceu no Brasil e teve participação decisiva de pesquisadores nacionais.

“O Google Earth Engine é uma plataforma tecnológica para análise de dados ambientais em escala planetária. Ela disponibiliza imagens de satélite produzidas nos últimos 40 anos, atualizadas diariamente, e fornece as ferramentas necessárias e um massivo poder computacional para cientistas e outros interessados detectarem mudanças e tendências na superfície terrestre, nos oceanos e na atmosfera”, explica a cientista da computação Rebecca Moore, líder da equipe Earth Engine, na sede do Google em Mountain View, nos Estados Unidos. “A plataforma é uma ferramenta que democratiza o acesso a dados de satélite, transformando pixels em conhecimento.  É justo dizer que o Earth Engine foi concebido no Brasil e guiado por cientistas brasileiros, notadamente os pesquisadores Carlos Souza Júnior, do Imazon, e Gilberto Câmara, do Inpe [Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais].”

Versão mais sofisticada, avançada e robusta do que o Google Earth – o popular programa computacional que permite a visualização de modelos tridimensionais do globo terrestre –, o Earth Engine também possibilita a elaboração de detalhados mapas do planeta, agregando imagens de satélites, mas vai além. Uma vantagem da plataforma é permitir aos pesquisadores fazer cálculos e processamento de dados na própria nuvem de computadores do Google, o que facilita a extração de informações das imagens. Para se ter uma ideia da facilidade oferecida por esse sistema, Hansen, da Universidade de Maryland, dispôs de 10 mil computadores do Google trabalhando em paralelo, totalizando 1 milhão de horas de processamento. Esse exército computacional analisou 700 mil imagens do satélite Landsat, o equivalente a 20 trilhões de pixels, para produzir o mapa global das florestas do mundo com uma resolução de apenas 30 metros. “Uma tarefa que teria levado mais de 15 anos para ser concluída em um único computador foi finalizada em poucos dias com o Google Earth Engine”, ressalta Rebecca.

© Google Engine
álise temporal do desmatamento na Amazônia: ocupação humana entre 1984 e 2012 ao longo da rodovia BR-364 em Rondônia

Hoje, mais de 3 mil cientistas e instituições ao redor do mundo empregam a plataforma em suas pesquisas. “Com o Earth Engine, pretendemos enfrentar desafios globais em áreas como segurança alimentar, disponibilidade de água, saúde pública, mudanças climáticas e gestão de recursos naturais escassos”, diz Rebecca. A ideia de criar uma ferramenta com esse potencial surgiu em 2008, quando a pesquisadora do Google esteve em Brasília para lançar o Google Earth Solidário, projeto que coloca os sistemas Earth e Maps à disposição de organizações sem fins lucrativos para que possam dar visibilidade às suas causas. “Num intervalo de uma apresentação sobre como os índios suruís usavam tecnologias Google para proteger suas terras, Carlos Souza Júnior se aproximou e disse que, apesar de o Earth e o Maps serem fantásticos, ele sentia uma carência por novas tecnologias de mapeamento que suportassem um monitoramento ambiental em larga escala – um sistema que fosse capaz de mapear, medir e monitorar o desmatamento da Amazônia, por exemplo”, recorda-se Rebecca. O Imazon tinha habilidade técnica e científica para fazer isso, mas estava limitado pela enorme quantidade de imagens de satélite e recursos computacionais exigidos – levava semanas para rodar a análise de desmatamento da organização em um único computador. “Foi, então, que percebemos que este era um desafio em ‘escala Google’.”

A partir daí intensificaram-se os contatos do pesquisador brasileiro e sua equipe com o Google e várias reuniões foram realizadas no Brasil e na Califórnia, nos Estados Unidos, onde fica a sede da companhia. Em 2009, a empresa norte-americana e o Imazon mostraram durante a Convenção do Clima em Copenhague, a COP-15, um protótipo do Google Earth Engine. No mesmo ano, o pesquisador Gilberto Câmara, que na época era responsável por vários produtos do Inpe relacionados ao monitoramento da Floresta Amazônica, foi convidado a participar da criação da plataforma. “Câmara nos orientou sobre uma série de características e configurações de dados que o Earth Engine deveria ter, como, por exemplo, a capacidade de realizar análises temporais. E recomendou que apoiássemos os pesquisadores a fazerem análises de mudanças na cobertura terrestre ao longo do tempo”, diz Rebecca, que estará em João Pessoa, na Paraíba, no fim deste mês de abril para participar do XVII Simpósio Brasileiro de Sensoriamento Remoto. Ela irá falar sobre as tecnologias de mapeamento Google na sessão especial “Big Data em observação da Terra: infraestruturas e análises espaço-temporais”.

© Google Engine
... ocupação humana entre 1984 e 2012 ao longo da rodovia BR-364 em Rondônia

O primeiro projeto operacional a usar o Google Earth Engine foi um sistema de monitoramento florestal criado pelo Imazon. Em 2012, quatro anos após o contato inicial com o Google, a organização lançou no Rio de Janeiro, durante a Conferência das Nações Unidas sobre o Desenvolvimento Sustentável, a Rio+20, seu novo Sistema de Alerta de Desmatamento alimentado pelo Earth Engine (SAD-EE). “O Google tornou as coisas mais simples. A integração de nosso Sistema de Alerta de Desmatamento, lançado em 2008, com o Google Earth Engine reduziu drasticamente o tempo despendido por nossa equipe para fazer o gerenciamento de dados e imagens de satélite. O SAD-EE representou uma revolução na forma de monitorarmos nossas florestas. Com ele, conseguimos produzir alertas de desmatamento por meio de boletins de forma rápida, permitindo um combate mais eficaz contra o desmatamento ilegal”, diz Souza Júnior, que é geólogo e pesquisador do Imazon, que tem sede em Belém (PA).

A primeira grande vantagem oferecida pelo SAD-EE, segundo o pesquisador, é que os dados e as ferramentas de processamento de imagens de satélites, edição de mapas digitais e validação do mapeamento estão disponibilizados e rodam nos computadores do Google. Com isso, o tempo necessário para pré-processamento, análise, divulgação dos dados e geração dos alertas reduz-se consideravelmente. A segunda vantagem é a possibilidade de integração com sistemas de comunicação móvel, com smartphones e tablets, e com a rede de computadores da internet. “Isso facilita o acesso aos alertas de desmatamento e de degradação florestal por parte dos usuários”, ressalta Souza Júnior. Ele destaca, ainda, o enorme potencial colaborativo do SAD-EE, que permite a qualquer pessoa fornecer dados e informações coletados em campo e em tempo real.

Além do Imazon, pelo menos uma dúzia de pesquisadores e instituições brasileiras usam o Earth Engine. Uma delas é o Instituto Centro da Vida (ICV), organização não governamental ambientalista sediada em Cuiabá (MT), cujo foco são projetos que conciliem a produção agropecuária e florestal com a conservação e a recuperação do ambiente. “Um diferencial dessas tecnologias é  agilidade no acesso e no processamento de dados de sensoriamento remoto”, conta o engenheiro florestal Ricardo Abad, coordenador do Núcleo de Geotecnologias do ICV. O instituto possui diversas atividades em campo, como experimentos de restauro de áreas de preservação permanentes (APPs) e nascentes, além de trabalhos com intensificação de pecuária. Dados desses experimentos são adquiridos, armazenados e compartilhados por meio de ferramentas que têm como base as tecnologias Google Geo.

“Depois de coletarmos em campo imagens de alta resolução – seja com balões, pipas ou vants [veículos aéreos não tripulados] –, nós as arquivamos no Maps Engine, uma plataforma voltada ao armazenamento e compartilhamento de dados geoespaciais. Paralelamente, usamos smartphones com sistema Android que acessam formulários eletrônicos para realizar a coleta de informações em campo usando o Open Data Kit. Esses dados, por sua vez, são armazenados na nuvem Google, permitindo que sejam acessados de qualquer lugar do planeta onde exista internet”, diz Abad. Open Data Kit, ou simplesmente ODK, é um aplicativo que permite a coleta de dados e o envio deles a um servidor on-line com dispositivos móveis Android.

Técnicos e pesquisadores do ICV também empregam as ferramentas Google para verificação de imagens dos alertas de desmatamento emitidos pelo Imazon e Inpe. “A facilidade de acessar imagens muito recentes possibilita grande agilidade na geração de relatórios que podem subsidiar ações de fiscalização. Usamos a plataforma Google Earth Engine para gerar classificações multitemporais de uso e cobertura do solo e, assim, constatar o avanço de culturas, pastagens e reservatórios de usinas hidrelétricas, entre outros, que acabam provocando desmatamento”, diz Abad. “Recentemente, utilizamos essas imagens para verificar o enchimento de um reservatório de uma recém-construída hidrelétrica no rio Teles Pires, que faz a divisa dos estados do Pará e Mato Grosso, constatando o alagamento de extensas áreas de florestas.”

© Google Engine
Primeiro mapa digital das florestas existentes no planeta feito com imagens de satélite

O Earth Engine está também sendo empregado pelo pesquisador Lucas Schmidt Cavalcante, do Instituto de Ciências Matemáticas e de Computação da Universidade de São Paulo (ICMC-USP), para identificar e monitorar culturas agrícolas por meio de imagens de satélite. O objetivo final desse monitoramento é melhorar as estimativas de produção. “Não sou da área de sensoriamento remoto e meu contato com esse campo se deu no ano passado, durante um estágio de quatro meses que fiz no Google na Califórnia”, explica Cavalcante, que é formado em Ciências da Computação. “Naquela ocasião, percebi que o Earth Engine poderia ter uma aplicação interessante para os métodos de classificação que estava desenvolvendo em meu mestrado, com bolsa da FAPESP. A finalidade é estudar tecnologias capazes de detectar diferentes culturas agrícolas. Também planejo avaliar as áreas de plantação de cana-de-açúcar em São Paulo.”

Durante o período em que estagiou no Google, entre maio e agosto de 2014, Cavalcante trabalhou com o time responsável pelo desenvolvimento do Earth Engine. “Meu objetivo foi expandir a API do Earth Engine para possibilitar a análise de séries temporais nos dados de satélite. Fui responsável por implementar um algoritmo que faz a detecção de distúrbios e identificação de tendências em áreas de vegetação. Por exemplo, ele é capaz de detectar áreas de desmatamento e determinar quanto tempo durou esse processo.”  API, sigla em inglês para interface de programação de aplicativos, é um conjunto de rotinas e padrões de programação para acesso a um aplicativo de software ou plataforma baseado na web.

“A cultura da cana tem grande importância para o Brasil e o estado de São Paulo responde por cerca de 60% da produção nacional. Logo, ser capaz de estimar e acompanhar a produção canavieira é de fundamental importância”, diz ele, ressaltando que a iniciativa de buscar ferramentas de sensoriamento remoto para melhorar o monitoramento da produção agrícola no mundo foi uma das ações propostas durante reunião dos ministros de Agricultura dos países que integram o G20 – grupo de nações mais desenvolvidas do planeta – realizada em Paris em junho de 2011.

Na Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Presidente Prudente, a engenheira cartógrafa Arlete Meneguette, professora do Departamento de Cartografia, tem amplo conhecimento das soluções Google Geo. Além de ensinar o uso dessas ferramentas aos seus alunos, ela atua na capacitação de cartógrafos, educadores e outros profissionais que utilizam esses sistemas. Com doutorado em fotogrametria pela Universidade de Londres, na Inglaterra, Arlete é voluntária do Google Maps, líder do Grupo de Educadores Google em Presidente Prudente e revisora regional do Google Map Maker, que permite aos internautas adicionar elementos inéditos no Google Maps e no Google Earth.

“Há democratização de acesso porque os usuários se tornam produtores e consumidores de informação georreferenciada”, destaca Arlete. “Quando contextualizada e significativa, a geoinformação pode se transformar em conhecimento espacial. É nesse ponto que o Google se destaca, porque organiza as informações do mundo e as torna mundialmente acessíveis e úteis.”

© Google
Cacique Almir Suruí conheceu o Google Earth...

Em suas pesquisas sobre geocolaboração – estratégia que permite que profissionais da área e voluntários gerem dados georreferenciados utilizando mapas cognitivos, navegadores GPS, sensores móveis e ferramentas de mapeamento na web –, a professora da Unesp tem validado plataformas de mapeamento colaborativo e participativo do Google. “Fiz uma escolha deliberada por elas, porque são as mais difundidas e utilizadas, e eu percebia uma necessidade de fundamentação teórico-metodológica em seus adeptos”, diz. “A cartografia colaborativa ganha cada vez mais importância por dar oportunidade aos usuários de contribuir com seu conhecimento local para aprimorar os mapas usados por milhões de pessoas.”

Suruís vigiam o próprio território 

Além de ser relevante para cientistas em universidades e instituições de pesquisa do Brasil, as tecnologias Google Geo também são um instrumento vital para os suruís, grupo indígena que vive nos estados de Rondônia e Mato Grosso. A aproximação entre os indígenas brasileiros e a gigante da computação teve início em 2007, quando, ao visitar uma lan house, o cacique Almir Suruí conheceu o Google Earth e viu seu potencial para preservar o patrimônio e as tradições de seu povo.

© Google
... e percebeu o potencial para preservar as terras de seu povo

Em seguida, Almir, agraciado como “Herói da Floresta” pelas Nações Unidas em 2013, convidou a equipe do Google Earth Solidário, comandada por Rebecca Moore, para visitar sua tribo e ensiná-los a usar as ferramentas de mapeamento Google para proteger a floresta e a cultura de seu povo. Os membros da tribo aprenderam a criar e postar vídeos no YouTube, marcar a localização de conteúdos e inseri-los no Google Earth, compartilhando sua história e modo de vida. Em 2012, com apoio do Google, os indígenas lançaram o Mapa Cultural Suruí durante o Fórum de Sustentabilidade Empresarial da Rio+20, a Conferência das Nações Unidas sobre o Desenvolvimento Sustentável realizada no Rio de Janeiro.

Os suruís, que só tiveram o primeiro contato com o homem branco em 1969, também aprenderam a usar smartphones para vigiar seu território e registrar casos de extração ilegal de madeira. Dessa forma, atuam na proteção da reserva florestal onde vivem. Com o celular, eles capturam fotos e vídeos com marca de localização por GPS, fazem o imediato upload no Google Earth e alertam as autoridades para o desmatamento. Eles também utilizam o Open Data Kit para monitorar o estoque de carbono de sua floresta e negociar no mercado de crédito de carbono. “Os suruís foram o primeiro povo indígena do mundo a vender créditos de carbono com certificação internacional”,
afirma Rebecca.

Em janeiro deste ano, a equipe do Google Earth Solidário participou de um encontro com mais de uma dezena de líderes indígenas em Cacoal (RO), interessados em replicar em seus territórios a bem-sucedida experiência dos suruís no manejo das tecnologias de mapeamento Google. O treinamento de índios dessas tribos dos estados de Rondônia, Pará e Amazonas deve ocorrer ainda este ano, segundo o Google.

dica da Maria Aládia

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