Os celulares deixaram de ser simples telefones para se tornarem parte da vida cotidiana. Apesar das vantagens proporcionadas pelos smartphones nas comunicações, no acesso a informações e na realização de diversas atividades diárias, é preciso pensar em até que ponto essa relação tem sido saudável. Estaríamos desenvolvendo uma relação de dependência tecnológica? Quais as possíveis causas e consequências de tratarmos esses aparelhos como extensões de nossos corpos? Discutem o tema a pós-doutora em sociologia pela Universidade de São Paulo (USP) Claudia Sciré e o médico psiquiatra e vice-coordenador do Grupo de Estudos sobre Adições Tecnológicas, Felipe Almeida Picon.
Ser-estar em conexão
por Claudia Sciré
O celular toca. A pessoa acorda com o despertador que programou na noite anterior. Assim que se põe de pé, aproveita para checar as mensagens do WhatsApp que chegaram enquanto estava dormindo. Já responde a algumas. Enquanto está no banheiro, aproveita para ler as principais manchetes dos jornais, cujas notificações recebe diariamente. Olha o feed do Facebook. Dá likes. Após o café, prepara a playlist que vai escutar na academia, com base no aplicativo de músicas que ouve via streaming. Durante o treino, continua a se comunicar via mensagens com amigos. Lança “bom dia” em grupos de conversas. Faz check in, anotando a localização aos amigos que o seguem no aplicativo na academia e aproveita para ganhar pontos. Antes de ir ao trabalho, calcula a melhor rota a ser seguida para fugir do trânsito. Na hora do almoço, faz mais um check in no restaurante por quilo que frequenta e conversa ativamente com alguns amigos via troca de mensagens. Encaminha vídeos engraçados. O dia passa, a noite chega e, enquanto espera alguns amigos no bar para um happy hour, manda mensagens dizendo que já chegou. Durante a descontração, celulares todos em cima da mesa. De vez em quando, “desliga-se” da conversa para ler e responder uma ou outra mensagem. Tiram-se fotos. Marcam-se uns aos outros e as imagens são postadas nas redes sociais. Enxurradas de curtidas. É hora de ir embora. Despede-se dos amigos. Chama um transporte por aplicativo e o caminho todo de volta é dedicado a visualizações de feeds e mensagens. Chega em casa, toma um banho, coloca o aparelho no modo silencioso ao lado da cama e vai dormir.
Essa cena cotidiana poderia descrever a vida de muitos de nós. Ao menos algumas de suas partes condizem com nossos hábitos atuais de uso de telefones celulares. O monitoramento constante das notificações, a utilização das múltiplas funções que um aparelho oferece, os recursos que os possíveis aplicativos que nele podem ser instalados podem oferecer e, é claro, a possibilidade receber e realizar chamadas configuram uma situação na qual esses artefatos se apresentam como indispensáveis à vida cotidiana.
As práticas de ligações, troca de arquivos e mensagens compõem atualmente alguns dos ingredientes principais para a manutenção dos vínculos e relações sociais. Tanto que é dificílimo ter uma vida social sem celular à mão. Cada vez mais o ser e estar no mundo exige a posse desse dispositivo e as ações cotidianas se pautam, de alguma forma, nas potencialidades trazidas pelas funções que o objeto agrega. Oportunidades como acesso ao emprego, à prestação de serviços, o contato com um parente distante ou com amigos, as conversas diárias, o arranjo de atividades e o acesso à informação chegam pela ampla rede que envolve pessoas conhecidas e desconhecidas, fluxos de dados e informações e cuja conexão se concretiza por meio desses artefatos. Em um primeiro momento, isso pode parecer normal, sobretudo para as gerações mais jovens, que já nasceram na era da comunicação digital. Mas cabe a nós perguntarmos: isso sempre foi assim? Até que ponto é possível encarar nosso atual relacionamento com os celulares como uma relação de dependência?
Há seis anos, quando comecei a construir minha pesquisa de doutorado, que tinha como objetivo estudar nossa relação com esses aparelhinhos – que hoje se colocam como condição primordial para a comunicação em sociedade –, o cenário era outro. Ainda eram poucos os smartphones, ninguém perguntava a senha do wi-fi e não andávamos tão curvados em frente de grandes telas brilhantes. Ao longo dos anos de estudo, as coisas foram mudando. Então, passei a investigar como é possível entender o grau de dependência que foi construído em relação a esses artefatos.
Se hoje essa relação se naturalizou, é preciso reconhecer que ela foi construída ao longo do tempo. Até o celular atingir o patamar atual de um objeto praticamente indispensável, conformou-se um processo longo e com múltiplas participações. Por um lado, o desenvolvimento tecnológico configurou um novo tipo de aparelho, cada vez maior e cheio de funções e possibilidades quando conectado à internet – os smartphones. Por outro, as operadoras de telefonia também construíram a ideia de um mundo de conexão constante como extremamente necessário à vida atual. Por fim, nós abraçamos a ideia e nos convertemos em usuários ativos dessa tecnologia. Aprendemos a viver no imperativo da velocidade da troca de mensagens, da resposta instantânea para nossas perguntas, e qualquer momento de desconexão passou a ser vivenciado como privação. E por que isso ocorreu?
Minha pesquisa mostrou como o processo se trata de uma construção social e é fruto da forma como os usuários têm se relacionado com esses objetos ao longo de sua apropriação. Ou seja, a partir do momento em que os celulares saem das lojas e começam a ser utilizados e incorporados às rotinas de seus usuários, inaugura-se uma relação que só tende a gerar cada vez mais apego. Isso porque, conforme passamos a usá-los, esse uso foi se retroalimentando e criando uma cadeia de conexões da qual é difícil escapar.
É possível afirmar que ligações, mensagens, fotografias, filmagens, músicas armazenadas, links diversos e todos os elementos que circulam num amplo espaço comunicacional ajudaram a criar uma verdadeira rede, cujas dimensões estão para além dos limites físicos, chegando ao ciberespaço. Essa cadeia que nos liga diretamente aos celulares começou a crescer cada vez mais enquanto colocávamos conteúdo para circular.
Em outras palavras, colocamos nossa vida no fluxo e passamos a depender da conexão para gerenciá-la. Hoje, o esforço para se manter fora do espaço comunicacional é muito maior do que dentro dele. Isso porque o conteúdo que circula envolve não apenas dimensões racionais relacionadas à coordenação de atividades, resolução de problemas, incremento da rede de contatos profissionais etc., mas também obrigatoriamente dimensões emocionais que se encontram “materializadas” nessa cadeia. Assim, o que transita pelo espaço comunicacional móvel não são apenas elementos responsáveis em parte pela manutenção ou quebra de relações sociais. É preciso atentar para o fato de que eles, em seu conteúdo, mobilizam sentimentos e relações afetivas.
As mensagens guardadas, fotos, filmagens etc., que muito têm a dizer sobre a vida dos usuários, bem como suas relações e práticas cotidianas e conexões com o mundo, têm papel essencial para explicar as relações de dependência que se constroem. É possível entender como o estabelecimento de uma relação emocional com o aparelho se dê justamente a partir da relação emocional que se tem com o conteúdo nele armazenado e com todos os conteúdos possíveis que ele permite fazer circular. Sendo assim, observa-se que a relação de dependência que tem se forjado não se coloca apenas em termos de uma relação funcional, que envolve elementos racionais de gerenciamento do cotidiano, mas também – e de forma intensa – de uma relação emocional.
Por isso é tão difícil abrir mão de estar em conexão: por um lado, os elementos que nos permitem gerenciar a vida estão todos presos no fluxo desse espaço comunicacional que os celulares nos ajudam a acessar, de forma que precisamos deles para termos acesso e realizarmos na velocidade que nos é exigida – e por que não com maior precisão e menos complicação – as tarefas do dia a dia. Por outro, os conteúdos que circulam – e que claramente podem mobilizar dimensões emocionais – atuam como elementos que nos interligam cada vez mais aos aparelhos, numa imbricada teia da qual cada vez mais é difícil se desfazer.
Se hoje se apresentam aos nossos olhos formas cada vez mais cativas de uso do celular e um consequente apego a ele, é importante entender que nós, como usuários, talvez tenhamos construído uma cadeia que nos torna uma coisa só com nossos aparelhos. Mas essa cadeia não é fechada nem imóvel. Ela pode tanto crescer e se expandir como ter nós e pontos de bloqueio. Cabe a nós percebermos que os dispositivos de captura acabam cerceando nossa liberdade e encontrarmos as possiblidades para construir os bloqueios que se fazem necessários. Isso significa deixar um pouco de lado as vantagens que promessas de conectividade permanente parecem nos oferecer, mas que por muitos momentos acabam nos afastando do presente e do fluxo de acontecimentos que nos permitem viver de forma mais autônoma e menos presa a verdades prontas e scripts de ação previamente combinados.
O ESFORÇO PARA SE MANTER FORA DO ESPAÇO COMUNICACIONAL É MUITO MAIOR DO QUE DENTRO DELE. ISSO PORQUE O CONTEÚDO QUE CIRCULA ENVOLVE NÃO APENAS DIMENSÕES RACIONAIS, MAS TAMBÉM DIMENSÕES EMOCIONAIS QUE SE ENCONTRAM “MATERIALIZADAS” NESSA CADEIA
Claudia Sciré é doutora em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP), pesquisadora independente e autora do livro Consumo Popular, Fluxos Globais (Annablume, 2012).
Implicações clínicas
por Felipe Almeida Picon
Imagine-se sem o seu smartphone. Imagine-se sem nenhum tipo de acesso à internet. Sem poder escutar suas músicas, sem acessar mensagens de texto ou redes sociais e sem conseguir utilizar aplicativos de mapas urbanos enquanto dirige numa cidade grande desconhecida. A imagem dessas situações não é nem um pouco confortável, não é? Poderíamos dizer que, ao contrário, são situações que, para muitos, poderiam desencadear ansiedade. Não é por acaso que todas essas situações, no mínimo, nos perturbam, e isso tudo se deve ao fato de já estarmos habituados a viver com o auxílio dessas tecnologias ao alcance de um toque no smartphone.
Desde o surgimento do primeiro telefone móvel em 1971, nos Estados Unidos, até os dias de hoje, esses aparelhos tiveram uma evolução exponencial. Atualmente a maioria deles são smartphones por incorporarem a “inteligência” de um computador, reduzidos ao tamanho da palma da nossa mão. Essa junção do telefone com o computador de mão, associada com o aumento da capacidade de transmissão de dados trazida pela maior disponibilidade de banda larga no mundo inteiro, facilitou a explosão do consumo de smartphones mundialmente.
São essas características específicas que também permitem que hoje em dia exista uma nova situação clínica, a dependência de smartphone. Em inglês, utiliza-se o termo Nomophobia, que vem de No Mobile Phobia (medo de ficar sem o telefone móvel). A dependência de smartphones, da mesma forma que outras dependências comportamentais, se caracteriza pela dificuldade de a pessoa ficar longe de seu smartphone, apresentar ansiedade, irritabilidade ou tristeza intensas ao ficar sem ele, não conseguir controlar seu tempo de uso, necessitando utilizar cada vez mais seu smartphone, começar a ter prejuízos em diversas áreas da vida (por exemplo: piora do desempenho no trabalho, perda ou piora no relacionamento com amigos e família, prejuízo no relacionamento conjugal, prejuízo acadêmico/escolar) e manter seu uso excessivo apesar de perceber os prejuízos que já vem tendo.
A pessoa que não consegue mais ficar longe de seu smartphone, nem que seja por alguns minutos, sem começar a sentir-se ansiosa, angustiada e preocupada possivelmente possa estar sofrendo desse problema. Não estamos falando aqui de situações leves, como preocupações de ficarmos sem o aparelho numa situação de perigo ou quando precisamos chamar ajuda e o único meio de comunicação disponível seria o smartphone. O que se considera um problema digno de atenção especializada, com acompanhamento de psicólogo ou psiquiatra, são situações nas quais a pessoa sofra intensamente por não ter o smartphone ao alcance da mão e venha a ter prejuízo em sua vida diária em decorrência dessa condição.
Muitos jovens atualmente consideram que seus telefones celulares são extensões de seus corpos, pelo fato de nunca estarem longe deles e por fazerem praticamente todas as suas atividades acompanhados de seus telefones. Eles se comunicam com os amigos por mensagens, paqueram por meio de aplicativos, acessam todo e qualquer conteúdo da internet e ainda jogam online. Por todas essas atividades com o smartphone, são os jovens que estão sob maior risco de desenvolverem um quadro de dependência. Felizmente, a maioria não chega a evoluir para um quadro de dependência formal, mas pode acabar apresentando quadros mais leves de abuso, que também podem trazer prejuízos. Outro tipo de problema associado ao uso excessivo de smartphones é o aumento do risco de envolvimento em acidentes de trânsito (para mensagens, acesso a redes sociais, acesso a internet e outros) enquanto se dirige, o que leva o motorista a perder o foco do trânsito para desviá-lo ao que está fazendo em seu smartphone. Esse problema vem sendo abordado em diversos países com campanhas grandes para a educação da população.
Apesar disso, a dependência de smartphones ainda é uma situação clínica que não foi oficialmente reconhecida pelos órgãos mundiais de classificação dos transtornos mentais. Houve propostas de incluí-la como um novo transtorno, mas isso ainda não ocorreu. Clinicamente, é uma situação que já vem sendo atendida pelos profissionais da saúde mental em todo o mundo, devido às suas repercussões reais na vida das pessoas. O fato de ainda não ser reconhecida cientificamente dificulta a estruturação de tratamentos específicos, até por ser um fenômeno extremamente recente. Nesse sentido ainda não existem consensos de como a dependência de smartphone deve ser tratada. Tendo isso em vista, é lógico pensarmos que cada caso deverá ser visto individualmente para que o profissional possa ajudar cada paciente da melhor forma possível, seja com a aplicação de técnicas de psicoterapia (como ocorrem com as outras dependências comportamentais), seja com a utilização de medicações psiquiátricas caso exista algum outro transtorno mental ocorrendo ao mesmo tempo que a dependência de smartphone ou, até mesmo, propiciando que esta se desenvolva.
Considerando as possíveis implicações negativas da dependência de smartphones, faz sentido pensarmos que a prevenção seja uma das melhores formas para abordarmos o problema, antes que ele ocorra e se torne, de fato, uma dependência. Como atualmente é muito difícil as pessoas em geral viverem sem acesso à tecnologia ou mesmo com pouco acesso a smartphones, talvez a ideia de abstinência total, que se aplica às dependências químicas (cocaína, crack, maconha, por exemplo), não seja possível de ser executada. Nesse sentido, a prevenção deve ser feita por meio da educação sobre o uso, e talvez essa educação seja mais efetiva se for feita desde a primeira vez que a criança tenha acesso ao smartphone. Ensinar que há outras formas de lazer que não passam pela tecnologia, que é possível termos acesso às tecnologias com parcimônia, mesclando com outras atividades, é um dos grandes desafios para os pais de hoje e das gerações futuras, ao mesmo tempo que é provavelmente uma das formas mais efetivas de se prevenir a dependência de tecnologia, de uma forma geral.
Os smartphones são, sem dúvida, um grande avanço das telecomunicações que facilita diversas de nossas atividades diárias e que tem evoluído, com seus aplicativos, para facilitar ainda muitos outros aspectos de nossa vida pós-moderna. A possibilidade de desenvolvermos uma dependência comportamental devido ao seu uso excessivo deve servir de motivo para repensarmos a maneira como estamos nos relacionando com as novas tecnologias. O que, dentro de nós, nos leva a ficarmos presos a um tipo específico de comportamento ligado a uma tecnologia? Estaríamos deixando de ser os mestres das tecnologias para nos tornarmos escravos delas? Ou estaríamos apenas deslocando nossas necessidades mais primitivas para serem satisfeitas pelas novas tecnologias? Todas essas perguntas devem nos fazer pensar, tendo em vista que cada vez mais novas opções tecnológicas têm entrado em nosso dia a dia. Como faremos quando for comum pessoas vestirem roupas inteligentes (o relógio inteligente já foi recentemente lançado)? Como faremos quando for comum termos carros inteligentes, que dispensam o motorista? Essas e outras tecnologias poderão também nos causar problemas emocionais e teremos que estar ainda mais atentos para evitar que isso nos atrapalhe no futuro, para que possamos usufruir dos avanços, sem necessariamente sofrermos com seus possíveis prejuízos.
ENSINAR QUE É POSSÍVEL TERMOS ACESSO ÀS TECNOLOGIAS COM PARCIMÔNIA, MESCLANDO COM OUTRAS ATIVIDADES, É UM DOS GRANDES DESAFIOS PARA OS PAIS DE HOJE E DAS GERAÇÕES FUTURAS, AO MESMO TEMPO QUE É PROVAVELMENTE UMA DAS FORMAS MAIS EFETIVAS DE SE PREVENIR A DEPENDÊNCIA DE TECNOLOGIA
Felipe Almeida Picon é médico psiquiatra da infância e da adolescência, pesquisador no Programa de Pesquisa em Transtorno de Déficit de Atenção/Hiperatividade em Adultos do Hospital de Clínicas de Porto Alegre e vice-coordenador do Grupo de Estudos sobre Adições Tecnológicas.
via Revista e
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