terça-feira, 4 de abril de 2017

Eles são desconectados por opção mesmo em tempos de internet


País em que, segundo as estatísticas, o número de aparelhos celulares chega a ser maior do que o de habitantes; onde mais da metade da população tem acesso à internet, e um contingente de proporções gigantescas mantém contas em redes sociais, há pessoas que não aderiram ao uso da tecnologia digital. Eles não gostam (até porque não se consideram) de ser chamados de "desplugados", "alienados". São, por assim dizer, refratários conscientes à aplicação das ferramentas hoje disponibilizadas. Mais do que isso, não criticam e respeitam a opção daqueles que incorporaram o emprego dos dispositivos, programas e aplicativos à rotina. 

Professora, Cássia Nascimento cultiva um hábito do qual muitos abriram mão por conta da evolução tecnológica: ela escreve cartas à mão. Destaca, no entanto, que faz isso em ocasiões especiais e que mantém conta em correio eletrônico. Na prática, Cássia costuma, ainda que com menos frequência, enviar cartões às pessoas com quem se relaciona. 


Explica que o gesto denota mais pessoalidade e consideração. "Escrever de próprio punho é um gesto de carinho, demonstra o quanto gostamos de alguém." Até por praticar esse conceito, Cássia procura transmiti-lo aos alunos. "É curioso, mas as crianças com quem trabalho entendem e até gostam de se corresponder assim também. Claro, elas convivem com as mesmas ferramentas, usam os mesmos dispositivos, mas sabem valorizar outras formas de expressão, como os cartões." 

Cássia também não mantém página em rede social. "Não vejo necessidade. Acho que o espaço poderia ser melhor aproveitado, mas respeito a escolha de quem usa. Até para não me expor e discutir assuntos que pouco acrescentam, prefiro ficar distante, o que não me impede de me manter informada e acompanhar tudo o que acontece." 

Sem internet para as crianças 

Na casa do fotógrafo Luiz Antonio Setti de Almeida o uso da internet foi abolido. Pai de seis filhos, ele entendeu que a medida foi a mais indicada para evitar que as crianças tenham acesso a conteúdos impróprios e entrem na zona de conforto que leva muitos a não estudarem. Além disso, Setti aponta a distância do vício de ficar o tempo todo plugado como fator que levou em conta para adotar a postura. 

Ele não considera que a decisão tenha sido radical, menos ainda usou de arbitrariedade. "Conversei e expus para eles as razões e tudo correu sem problemas. Existe o tempo certo para usar a internet. Eles têm jogos como qualquer criança, mas optamos por controlar esse comportamento." 

Com isso, Luiz Setti conseguiu liberar os filhos do uso excessivo da rede mundial de computadores. Não fosse por tudo isso, ele mantém em casa um acervo de livros que são consultados para trabalhos escolares. "Aqui, eles podem estudar e desenvolver na prática o aprendizado. Hoje, ficou muito fácil e cômodo para os adolescentes fazerem lição e outras tarefas. Basta digitar no buscador, e o dever aparece pronto. Isso não agrega conhecimento algum." 


De precursor a desconectado 

O psicoterapeuta e escritor José Carlos de Campos Sobrinho teria motivos de sobra para utilizar ferramentas tecnológicas, se assim o quisesse. No começo dos anos 90, quando a internet era aplicada em escala bem menor (na realidade, apenas para fins específicos; a "estreia" propriamente dita ocorreria em 1995), ele foi surpreendido com um presente dado por sua sobrinha: um modem. 

"Zeca", como é mais conhecido, foi praticamente um precursor no uso da rede mundial de computadores mas as coisas pararam por aí. Hoje, em tempos de plena efervescência digital, não usa celular, nem mantém perfil nas redes sociais. Possui uma conta de e-mail da qual se socorre esporadicamente apenas para aquilo que julga essencial. 

Sobre o telefone, aliás, ele conta outra curiosidade: quando clinicava, costumava portar um BIP, nome dado ao dispositivo eletrônico pelo qual era contatado. O aparelhinho, que José Carlos chama de "avô do celular" porque antecedeu à tecnologia dos telemóveis, era acionado por uma rede de transmissões via rádio. Muito popular lá pelos idos de 70 e 80, hoje não passa de recordação. 

Como, então, o personagem desta matéria se comunica? "Eu falo", responde ele de pronto para zoar com o repórter. Fala, gesticula, acena, emite sinais, recorre a códigos, mas não usa celular. "Quem precisa me contatar, liga para minha casa ou para o consultório. Não faz a menor falta", acrescenta. José Carlos está longe de ser um desplugado, não critica, menos ainda patrulha aqueles que não sabem viver sem a parafernália eletrônica. "Só entendo que não preciso somar com a maioria." 

O entrevistado aponta inconvenientes provocados pela onda digital. "Hoje, se o jovem sai de casa, é contatado pelo telefone e não atende, acaba estabelecendo o desespero entre seus pais." Em relação à rede social, José Carlos, considera que esses ambientes pouco ou quase nada agregam. "Na verdade, se alguém fizesse um mapeamento criterioso, descobriria que mais de 90% daquilo que é postado não faz o menor sentido. Quando uma pessoa coloca ali algo que sabidamente não está correto, que ultrapassa a barreira do absurdo, por mais incrível que possa parecer, a besteira é amplificada. São centenas de curtidas, de compartilhamentos e a ignorância ganha espaço. Legal que Umberto Ecco tenha dito que a internet é o espaço que deu voz aos imbecis." 

O escritor aponta a intolerância como outro fator que faz da rede social um campo de batalha, um ambiente que dissemina o ódio. José Carlos diz que tudo do que precisa são os livros que compõem o acervo da biblioteca instalada em seu consultório. "Eles me mantêm mais atualizado. E sempre." 


Conectividade em excesso pode aumentar a ansiedade e gerar depressão nos usuários 

Por que num cenário de predominância dos recursos tecnológicos ainda existe quem relute ou prefira não se integrar a essa onda? Como explicar que muitos não usem telefone celular, correspondam-se por meio de cartas, ou ignorem o WhatsApp e outros meios de interatividade? 

Com a palavra, o professor de Mídias Digitais da Universidade de Sorocaba (Uniso), Wilton Garcia, segundo quem "há diversas maneiras de usufruir das tecnologias emergentes sem necessariamente ficar refém delas." Não há, ele acrescenta, uma obrigação de se adquirir telefone celular, por exemplo. 

"É preciso ficar atento aos desafios de (re)considerar o apelo publicitário do mercado de tecnologias e a alarmante cultura digital. Esta última traz benefícios (comunicação, informação, etc.), mas também malefícios (ansiedade, depressão, etc.). A lógica do imediatismo e da dependência informacional deixa muita gente descontrolada para acessar, a todo instante, as redes sociais. E, depois, o que fazer com esses dados, que são rapidamente descartáveis?" 

Garcia diz que não existe uma demanda única na vida. "Importante é o bem-estar. Por isso, a felicidade está em várias experiências contemporâneas distintas, sem a necessidade absurda de fazer parte, de modo tão radical, da vida alheia com o uso da internet. Estar livre de situações embaraçosas, por exemplo, pode ser uma justificativa plausível para se viver bem, sem atropelos." 

"Todavia, nas redes sociais, interessam somente os números de seguidores, clicks ou likes. Por isso, a condição humana apenas ilustra como temática dos debates virtuais, espaço de agenciamento/negociação de uma representação numérica qualquer cujos dados formatam uma anotação sistêmica na dinâmica tecnológica." 

A leitura do especialista permite comparar o ambiente virtual àquilo que Shakespeare chamou de "um infinito de nadas". Embora muitos não se deem conta, a interação na era digital é quase nenhuma. 

Invasão de privacidade 

Outro aspecto a ser considerado em se tratando do uso da tecnologia nesse contexto está relacionado à onda de ataques discriminatórios virtuais que fez muita gente reconsiderar e se desplugar da rede. Wilton Garcia diz que eles, os ataques, "são formas inadequadas de pensar sobre as relações humanas. As pessoas (o usuário-interator) confundem muito entretenimento com informação. Isso são instâncias distintas, mas provocam sérios problemas". Nas redes sociais, ele continua, as pessoas sentem mais liberdade de pronunciar o que não devem, porque estão distantes. 

Por outro lado ainda, é sabido que o acesso à internet e o uso de telefone celulares não garantem a privacidade. Para o estudioso, "vida pública é o oposto da vida privada". "No contemporâneo, o público predomina mediante a exibição da vida cotidiana. Há enorme dificuldade de se manter a privação da vida, uma vez que é comum a vontade de se tornar celebridade (ou famosos), além do complexo sistema de vigilância virtual, em que as pessoas são expostas, e exibidas quase como mercadorias.

via José Antonio Rosa | Jornal Cruzeiro

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