segunda-feira, 25 de setembro de 2017

A livraria do futuro (do substantivo)


Mais importante intermediária entre autor, editora e leitor, eles enfrentam grandes desafios para mantar e ampliar sua relevância no mercado livreiro. Mas fica a pergunta: como serão no futuro?

por Jr. Bellé | Revista da Cultura

Antes de viajarmos ao futuro do subjuntivo das livrarias, é preciso dar uma volta em seu pretérito mais-que-perfeito: quando Santo Inácio de Loyola fundou a Companhia de Jesus, por volta de 1534, mal sabia ele que, cerca de um século e meio depois, seus jesuítas seriam os primeiros a comercializar livros neste Brasil brasileiro, em uma paragem maravilhosa, o colégio da ordem, no Morro do Castelo, coração da futura capital nacional, o Rio de Janeiro. Somente em 1750 uma livraria seria aberta, a Loja de Livros de Manuel Ribeiro dos Santos, em Vila Rica, Minas Gerais. Ainda assim, mais de cem anos depois, a compra e venda de livros em nossa continental Ilha de Vera Cruz ainda era tacanha, inexpressiva. Difícil dizer se as pequenas lojas e empórios estavam mais para livrarias ou espaços de encadernação, que as precederam. Na época, quem estivesse disposto a produzir uma obra teria de procurar um encadernador, devido à afinidade de negócios; aqueles que desejavam desfazer-se de obras deixavam-nas nas mesmas mãos, fertilizando assim um mercado embrionário. 

No século 19 e princípios do 20, quem se empenhou com mais ardor no ramo foram os imigrantes europeus, daí surgiram, por exemplo, Laemmert (1833), Garnier (1845), Lombaerts (1848) e Garraux (1850). A livraria mais antiga ainda em atividade no país também data desse período: Ao Livro Verde, na cidade fluminense de Campos dos Goytacazes, aberta em 1844. Mas o mais interessante de toda essa história, de todo esse conjunto de dados pretéritos, é que eles estão disponíveis, quem diria, justamente em um livro, esse amontoado de páginas sujas de tinta e costuradas em prensas industriais, especificamente no Pequeno guia histórico das livrarias brasileiras (Ateliê Editorial), da pena do historiador Ubiratan Machado, que hoje pode ser encontrado facilmente nas mais de 4 mil livrarias espalhadas pelo Brasil ou nos incontáveis sebos – e mesmo em seus respectivos, ou singulares, sítios virtuais.

A história das livrarias começou em pequenos espaços, ousadia de gente inventiva, mas aos poucos foi se transformando no que nos acostumamos a ver: grandes e imponentes extensões, latifúndios de histórias, poemas, crônicas, missivas, contos de fadas e de fatos, salvas de aparelhos eletrônicos, produtos de papelaria, cafés, restaurantes, jornais, revistas, áreas para teatro, cinema, saraus, shows, lançamentos, tardes de autógrafo, eventos dos mais diversos. As livrarias foram se moldando a seu tempo, escolhendo seus formatos de negócio, ora curtindo a crista da onda do mar tormentoso e egoísta do mercado, ora enfrentando suas ondas, naufragando e ressurgindo. É notório seu papel na difusão cultural e literária, seu ponto central como referência nas marés e ressacas que levam e trazem a literatura. Disso resulta a pergunta: qual será o papel que as livrarias interpretarão no futuro? E qual será seu figurino?

Para o poeta Fernando Paixão, a relevância das livrarias do futuro depende do modelo de negócios que adotarão e também se serão capazes de impor um aspecto orientador para leituras temáticas. “Acredito na sobrevivência de livrarias especializadas. No mundo em que a gente vive, com tanta informação, precisamos de gente que conheça o assunto e apresente para nós uma espécie de síntese, um resumo inteligente da conjuntura, e que ofereça um lugar em que tenha produtos que interessem, selecionados por um livreiro que entenda do assunto, que traga novidades surpreendentes. Esse aspecto orientador da livraria tem de permanecer. O conceito de livraria é menos o lugar onde você vai comprar o livro e mais um lugar que sinaliza o que há de mais importante, de pautar o que é mais relevante nos temas em que se trabalha.”

Paixão entende do riscado. Atualmente, é professor no Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB-USP) e trabalhou por mais de 30 anos como editor e gerente editorial da editora Ática. “Mas falo também como leitor, sempre fui um rato de sebos e livrarias.” Não agrada a ele o modelo “que parece um supermercado, onde a gente vê os produtos que fazem mais marketing e não os que são realmente bons”. A livraria do futuro precisa retomar seu papel de bússola, sinalizando os melhores nortes para cada tema, os pontos de fuga, as ilhas esquecidas, paradisíacas ou infernais, no meio do oceano de publicações. “Esse modelo de supermercado só serve para um pedaço do mercado, que é o da novidade, mas o mundo do livro não vive apenas disso. Uma coisa é um atacadão e outra é uma livraria que tem uma curadoria, propondo um conceito de qualidade e de orientação. Essa livraria especializada continua e continuará sendo muito necessária.”

A aposta de Leonardo Chianca, editor há mais de 30 anos, é similar. As livrarias têm e continuarão tendo um papel fundamental no mundo dos livros, ainda que seu modelo possa se transformar: espaços físicos menores e mais especializados tendem a oferecer aos futuros leitores e compradores experiências mais ricas e únicas. “Já estamos vendo isso acontecer no Brasil, principalmente em centros menores. A valorização de espaços e editoras independentes, a exploração de novos nichos e o estímulo cultural da diversidade são uma tendência e um valor a ser perseguido.” No entanto, na opinião de Chianca, para continuarem sendo centrais nesse mercado, o espaço físico das livrarias também precisa ganhar novo foco: “Como espaços culturais, elas não devem seguir apostando em sua transformação em salões de entretenimento e diversão, mas sim em espaços de exposição, reflexão e difusão da cultura como um todo”.



POR OUTRO LADO...
A discussão, no entanto, não é simples, e há inúmeras e imprescindíveis variáveis nessa matemática do futuro. Sergio Herz, CEO da Livraria Cultura desde 2011, discorre sobre tal complexidade: “Essa é uma discussão difícil, lojas muito pequenas restringem a experiência e a quantidade de produtos que podem ser oferecidos. Lojas muito grandes são caras. É uma discussão que surge pela frente, de um varejo que vai entregar uma nova experiência. O varejo terá de rentabilizar os espaços de forma que não seja apenas pela venda de mercadorias. Isso passa por eventos, espaços de sublocação, formas de sinergia com outros parceiros, para atrair público e expor suas marcas”. Isso porque, de acordo com o CEO, a maior parte da venda de livros e produtos será feita por meio de comércio eletrônico, enquanto às lojas físicas caberá o papel de socializar as experiências. “É para encontrar gente, para sair de casa, o ser humano não perderá essa característica de ter um ambiente assim, de diversão e interação, no futuro. A loja do futuro será social, pura. E muito menos especializada; você terá muitos produtos, capazes de complementar a experiência da leitura.”

A reflexão de Herz vai ao encontro das análises do espanhol Javier Celaya, economista que há 14 anos estuda o mundo dos livros para entender os caminhos vindouros inaugurados pela era digital. Seu portal, dosdoce.com, é referência na investigação do mercado editorial para todos os setores, incluindo livrarias, bibliotecas e agentes literários. “As pequenas livrarias, especializadas, são uma tendência na Europa e nos Estados Unidos, mas elas têm um problema: seus catálogos são muito reduzidos, assim como a oferta de produtos relacionados a eles. Há um lado bom, pois o livreiro conhecerá a fundo as obras e poderá recomendar boas leituras. Mas há um lado ruim, a experiência de ir até a loja física possivelmente não compensará, já que o consumidor pode adquirir os livros pela internet.” 

Essa experiência a que se refere Celaya é sua aposta para as livrarias do futuro e tem sua origem em uma indagação: por que alguém sairia de casa para comprar um livro se pode fazê-lo sentado no sofá? Isso é ainda mais complicado em grandes metrópoles, cujos deslocamentos, até os menores, podem levar horas. “A única coisa que fará com que as pessoas se desloquem até uma livraria, seja ela pequena ou grande, especializada ou não, é que ela terá lá, no espaço físico, uma experiência melhor, mais proveitosa e rica, do que se fosse comprar de casa.” 

Para enriquecer a experiência de compra, segundo Celaya, é preciso que as livrarias disponham de produtos que complementem a leitura desejada. Mas não só isso: “O espaço físico das livrarias não será mais onde vamos descobrir novas leituras, porque provavelmente já vamos descobri-las na internet, mas será um lugar para compartilhar nossas experiências de leitura, estar junto com pessoas que também gostam de ler, seja em formato de papel ou digital”. 

Dessa forma, as livrarias terão um papel fundamental no que tange a agregar pessoas interessadas e refletir sobre a literatura, criar eventos e disponibilizar produtos que suplementem as leituras. “Papel e pixels conviverão juntos por muito tempo, mas acredito que a sociedade do futuro lerá principalmente no digital e comprará mais pela internet. Acredito que em 30 anos viveremos num mundo inteligente, em que a livraria utilizará essas tecnologias com um olhar humano, incorporará o conceito de big data, dos algoritmos, e o livreiro, apoiando-se nessas tecnologias, poderá recomendar melhor novas leituras e produtos. Serão livrarias que se apoiarão nessas tecnologias para conhecer mais ainda seus leitores e clientes, para assim oferecer uma experiência de compra e de leitura mais rica. Hoje em dia, publicar livros é um negócio de risco, porque se sabe apenas quanto desse livro foi vendido, mas não se sabe qual foi o estado emocional do leitor ao lê-lo, se leu até o fim, qual o personagem que mais o fascinou, etc. Essas informações, que já estão e estarão cada vez mais disponíveis, farão o livreiro e a livraria mais assertivos e inteligentes.” 

É sempre importante lembrar, por fim, que, para além dos formatos e tecnologias vindouros, o mercado de livros não é uma indústria papeleira, não é uma indústria eletrônica, de hardwares e softwares. É, sim, uma indústria de histórias, de contar histórias – é esse seu papel mais importante, sua essência, que jamais pode ser perdida (sequer de vista). As livrarias, nesse cenário, são e serão seu ínterim, para que essas histórias continuem chegando aos leitores, emocionando-os, fazendo-os chorar, sorrir, questionar e, por que não, criar novas histórias e mudar aquela que já é sua. 

Há 20 anos atuando na Cultura e há seis como CEO, Sergio reforça que o “maior aprendizado nesse processo de transformação do mercado é conseguir alinhar crescimento de maneira sustentável sem perder valores e DNA. Isso é o maior desafio de qualquer empresa”. Caso contrário, como ele alerta, ao crescer vertiginosamente sem controle, uma empresa acaba trazendo para a equipe muitas pessoas que nem sempre compartilham dos mesmos valores ou têm outros em mente, o que acaba prejudicando por demais todo o negócio. “Por isso, hoje, se eu fosse lá atrás me preparar para os próximos 70 anos da Cultura, entre um crescimento acelerado, qualidade e DNA, iria muito mais me voltar para como mantenho meu valor. Se eu não tiver muito claro como manter valor no crescimento, prefiro crescer devagar.”

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