É fato que a leitura digital está sujeita à fragmentação e dispersão da atenção, mas também é verdade que recursos online enriquecem a experiência
Abel Reis | Época Negócios
"UM CASAL LENDO LIVROS IMPRESSOS EM UM RESTAURANTE INCOMODARIA TANTO QUANTO SE ESTIVESSE LENDO PELO CELULAR?" (FOTO: PEXELS)
O Google anda preocupado com o tempo que passamos online, especialmente no smartphone. Por isso lançou, em maio de 2018, um programa batizado de “Bem-estar Digital”. Considerado prioridade pela empresa, a sua promessa é frear o excesso de atividades em dispositivos eletrônicos. Ele permite monitorar a rapidez para atender uma ligação, quantos e-mails respondemos por dia e até programar o aparelho para ficar menos interativo durante conversas presenciais ou à noite. Claro que tudo isso deve ser ativado e acompanhado por ele, ele mesmo: o celular.
O pressuposto da plataforma é que estamos perdendo um mar de oportunidades lá fora. É sintomático que essa grande “campanha do bem” aconteça em um dos períodos mais críticos da empresa, pressionada duramente por temas como privacidade e segurança (ou melhor, a falta delas). A Organização Mundial da Saúde (OMS) pensa parecido. Incluiu o vício em games na Classificação Internacional de Doenças (CID-11). A indústria da saúde curtiu e compartilhou a novidade. Nos Estados Unidos, surgiram clínicas de rehab para dependentes em tecnologia e prescrições médicas a rodo.
Os pesquisadores Christopher J. Ferguson e Andrew Przybylski, em estudos separados, concluíram o contrário do que dizem Google, medicina e senso comum. Os efeitos da dependência tecnológica não chegam aos pés da química. Gamers adoecidos são raríssimos, apenas 3% do total. Para a maioria dos adolescentes, celular e redes sociais aprofundam laços e interesses reais. Apenas uma minoria, já predisposta à depressão e ansiedade, comete abusos. E, de certa forma, se tornou conveniente culpar gadgets por problemas em casa ou na escola.
Ainda estamos nos habituando à onipresença da tecnologia em nossas vidas. Estivéssemos fissurados por escrever em um caderno - no trânsito, trabalho, na cama etc - seríamos criticados, vistos com pena ou encaminhados ao médico? Se andássemos para cima e para baixo com as 700 páginas do Ulisses de James Joyce - e não um dispositivo eletrônico -alguém acharia um exagero? E um casal lendo livros impressos em um restaurante? Incomodaria tanto quanto se estivesse lendo pelo celular?
Tudo que é novo - e a tecnologia sempre será - gera estranhamento e até medo. A leitura digital (ainda) não tem o charme da leitura em papel. Enquanto o e-reader “paga” de objeto técnico, a obra impressa tem status de objeto cultural. Por isso é socialmente mais aceita e até admirada, mesmo se consumida em doses cavalares. Como fica essa comparação se cotejarmos uma obra impressa medíocre com um poema digital de Jason Nelson? Por aí se vê a complexidade de definir o que é saudável ou não.
Se recuarmos à Idade Média, veremos que a consolidação da imprensa de tipos móveis - e o livro impresso - redefiniu o ato de leitura: a leitura silenciosa e introspectiva sobrepôs-se à leitura em voz alta, e as técnicas de memorização caíram em desuso. Vale dizer que um novo suporte físico para a palavra escrita trouxe consigo uma revolução semiótica que por sua vez trouxe impactos dramáticos nas sociedades europeias à época - que o diga a disruptiva reforma protestante!
É fato que a leitura digital está sujeita à fragmentação e dispersão da atenção típicas do novo meio. Mas também é verdade que recursos online como pesquisa, dicionários, tradução e comentários de outros usuários enriquecem a experiência, tornando a leitura introspectiva e social ao mesmo tempo. A história seria outra se o papel (por algum milagre da ciência e tecnologia) oferecesse essas mesmas facilidades? Provavelmente, sim. Provavelmente, haveria muitos fãs e poucos detratores da hiperconectividade, por mais viciante que ela fosse. Resumindo: estamos na infância de uma nova revolução semiótica.
*CEO da Dentsu Aegis Network Brasil e Isobar Latam
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