quinta-feira, 27 de junho de 2019

A vida hoje brilha nas telas


Marcelo Gleiser
Trecho do livro "Caldeirão Azul" (Record, 2019)
Imagem: Internet

Numa visita recente ao magnífico Grand Canyon, nos EUA, me surpreendi com o número de pessoas tirando selfies e olhando para os seus celulares em vez de aproveitar o lugar real onde estavam, integrando corpo e mente ao cenário mágico bem a sua frente.

Este é apenas um dos sintomas que vejo como um novo fenômeno global: parece que todo mundo quer ser estrela —a estrela da sua própria vida.

Viver a vida através de experiências concretas tornou-se secundário; o importante é registrar tudo, tirando selfies e vídeos e compartilhando-os rapidamente nas plataformas de mídia social. Canais de YouTube se multiplicam exponencialmente. Superestrelas têm milhões de seguidores. Meus filhos, por exemplo, veneram alguns deles, sujeitos com uns vinte ou trinta anos que fazem vídeos deles jogando videogames com comentários cômicos e muito palavrão.

Os celulares e seus primos mais próximos, os tablets, estão nos transformando. A vida brilha nas telas o tempo todo. No furor de gravar tudo o que acontece com a gente para dividir com os outros, estamos nos esquecendo de nos engajar com o momento real e com as pessoas à nossa volta.

Com certeza, alguns vão criticar o que estou dizendo, afirmando que isso é típico de uma geração mais velha, que sempre reclama das novas tecnologias. No meu caso, eu vivo cercado de novas tecnologias, que uso direto no meu trabalho de pesquisa. Minha preocupação é outra, que vai mais fundo. É o resgate da condição humana.

Na era das telas individualizadas, a vida se torna um evento a ser apreciado pelos outros e não para contribuir com a experiência de cada um. O foco é no outro, sempre, na performance, e não no conteúdo do que está acontecendo.

Os celulares e a mídia social tornaram o ato de compartilhar informação fácil e eficiente, seja ela foto, vídeo ou documento importante. O alcance é muito maior, e a gratificação (quantos “likes” você ganha) é quantitativo. A vida vira um evento social, dividido com um monte de gente, que pode, então, julgar o seu “valor” como pessoa. É como se estivéssemos presos num episodio da série "Black Mirror".

Claro que parte disso é ótimo. Não há nada de errado em celebrar os momentos significativos de nossas vidas e dividi-los com as pessoas queridas. O problema começa quando a urgência de dividir o momento com os outros fica maior do que o desejo de vivenciar a experiência. O cômico americano Conan O’Brian, entre muitos outros, reclamou que nem consegue mais ver o seu público e percebe apenas um mar de celulares e tabletes registrando (ilicitamente) o seu show. Algumas celebridades estão proibindo os convidados em seus casamentos de usar celulares. Nick Denton, fundador da Gawker, disse a eles: “Você pode cuidar da sua presença virtual —e de seus seguidores no Twitter e —Instagram no dia seguinte.

Nossas mensagens, fotos e vídeos na mídia social podem ser gratificantes quando amigos, família e fãs respondem. Sentimos que nossa vida é importante. Mas esse tipo de gratificação é efêmera. Vem e vai rapidamente. Para muita gente, serve para tampar um problema mais profundo, talvez uma insegurança, ou solidão. Basear sua vida no que os outros pensam é uma receita segura para gerar muita ansiedade e frustração. Esvazia o seu âmago, enchendo-o com a esperança de que outros irão satisfazer a sua necessidade de viver uma vida plena, com significado. Isso nunca dá certo, algo que as celebridades sabem muito bem.

Criar um senso de si baseado no que os outros pensam não é nada de novo. A diferença é que na era das telas ficou muito fácil se conectar com muita gente, potencialmente em qualquer canto do mundo. Cada selfie ou vídeo promete a fama: “sou lindo/a, especial, e as pessoas vão ver isso e me admirar”.

Isso é muito novo. Até recentemente, poucos tinham esse tipo de acesso a um número grande de pessoas. Os círculos sociais começavam e terminavam com sua família e um grupo relativamente pequeno de amigos locais. Agora, podemos nos conectar com pessoas em outros países, dividindo nossa vida com quem nem conhecemos. Temos que lidar com os abusos e insultos, também, daqueles dentro dos nossos círculos sociais e de estranhos. Um usuário pode se esconder por trás de um nome falso, atacando pessoas perversamente, causando sérios danos emocionais. Essa é a nova cara do covarde digital.

Então é tudo apenas uma explosão de narcisismo coletivo? Felizmente, não. Muita gente usa as mídias sociais para promover causas sociais justas e dividir momentos de fato relevantes em suas vidas. O acesso à informação de qualidade é absolutamente incrível, e cobre praticamente qualquer assunto. Muitos amigos e famílias também fortalecem seus laços através dessa troca digital.

Por outro lado, existem aqueles que manipulam pessoas e grupos para seu ganho próprio. E existe muita besteira online, algumas inofensivas e outras perigosas.

Não podemos ou devemos escapar da era em que vivemos. As telas não são nossas inimigas. No entanto, precisamos estar atentos para o que estamos fazendo, e não agir sem consciência de nossos atos e escolhas. Precisamos nos dar conta do que há de bom e mau nas mídias sócias e não pular no trem sem saber aonde está indo.

Mais importante, precisamos aprender a nos desengajar das telas e a nos reengajar com a vida real, sem o meio digital como ponte entre você e seus amigos, família e natureza.

O que me traz de volta à cena no Grand Canyon. As telas levam você embora de onde você está, pondo o seu foco nos “outros”, os que estão do outro lado da mídia social, recebendo sua informação. Elas transformam o Grand Canyon, a praia, a festa no palco da sua performance, sua vida virando um grande show.

Existe uma diferença fundamental entre usar uma tecnologia e ser usado por ela.

Na minha casa, usamos “dias de desintoxicação”, sem telas para as crianças ou para nós. Tentamos criar um senso de equilíbrio entre a vida real e a virtual. Às vezes, vetamos todas as telas e focamos nossa energia e atenção na grande tela da realidade à nossa volta e nas relações concretas entre pessoas, aquelas que criam laços emocionais profundos, desde um abraço bem forte a uma conversa franca, olho no olho.

Ao menos para mim, não tem espetáculo maior do que esse.

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