segunda-feira, 19 de agosto de 2019

O que os likes dizem do nosso narcisismo (e da nossa inadequação)?


Christian Dunker | Tilt

Quando o Instagram anunciou que o número de curtidas em cada postagem não ficaria mais disponível para os usuários, você pode ter pensado que ainda era possível descobrir quantas pessoas curtiram uma publicação contando manualmente os nomes dos que se envolveram. Parece a mesma coisa, mas não é.

Existe uma relação intrínseca entre o narcisismo digital e a velocidade de interpretação da imagem. A contabilidade estimula a comparação entre pessoas, transferindo uma hierarquia de relevância e confiabilidade para o conteúdo e trazendo potenciais prejuízos psicológicos, aos que se obsessionam com a busca de curtidas.

Lembremos que o narcisismo é uma estrutura fundamental para todas nossas experiências de reconhecimento social e intersubjetivo. Alguém desprovido de narcisismo seria alguém incapaz de reconhecer o outro como semelhante e igualmente capaz de afetos, interesses e sofrimentos. Alguém com uma pane narcísica deste tipo seria incapaz de reconhecer até mesmo seus próprios sentimentos. A imagem popular do narcisista como alguém voltado só para si, incapaz de reconhecer desejos e valores diferentes dos seus, é muito parcial.

O narcisismo tem uma estrutura de palco: um ator contracena com alguém, para uma plateia. Às vezes o ator, coincide com o personagem e o diretor da peça. Dentro disso podemos encontrar muitas combinações: estar na plateia de si mesmo imaginando-se um protagonista. Sentir-se o coadjuvante que quer tomar o lugar do protagonista. Perceber-se como impostor do protagonista. Descer sistematicamente para a posição de plateia ou do sádico crítico de nosso teatro particular. Podemos estar cronicamente diminuídos em nossa estima, sempre no anonimato da plateia, ou, transparentes e invisíveis, nunca convidados para o espetáculo.

Alguns estão realizados apenas por participar da peça, ainda que como coadjuvantes, outros ressentem-se porque seu estrelato ainda não chegou. Certos narcisos decidem que serão grandes vilões. Há até mesmo aqueles que escolhem o personagem mais humilde, considerando que a verdadeiro espetáculo está acontecendo em outro lugar, por exemplo, no teatro celestial, ou em outra época, por exemplo, no vindouro futuro.

Podemos sentir, persistentemente, que nosso corpo, nossa forma de amar ou de consumir está inadequada ao personagem que queremos ou devemos desempenhar.

Todas as montagens narcísicas acima são fonte de sofrimento potencial, mas nem todas elas reduzem-se ao exibicionista latifundiário, empreendendo sua fazenda de likes. A linguagem digital, com sua métrica de curtidas, altera profundamente nossas gramáticas narcísicas porque amplia o acesso ao palco simbólico, estimula a variação de personagens imaginários e precifica o valor real da influência (ainda que a quantidade de likes não seja sempre um bom parâmetro para a efetivação e vendas). Barthes dizia que no interior de uma narrativa existem palavras "nós" e palavras "rede" de tal forma que no espaço digital cada qual se mede pela extensão e qualidade dos nós e das redes que formam seu algoritmo narcísico. Nesta situação não basta agredir-se ou praguejar contra o sistema. Uma vida isenta de narcisismo seria como tentar arrancar todas as máscaras em busca de nossa face real, autêntica e essencial, o que nos levaria apenas ao estado de carne viva ardente, diante do espelho digital.

Dar mais trabalho aos usuários para identificar o número de curtidas nas redes sociais é como fazer a gente assistir a partida sem saber se o estádio está lotado ou se estamos sozinhos apreciando o espetáculo. Talvez isso nos faça oferecer um tempo a mais para o que estamos realmente vendo e ouvindo; para a qualidade da peça e menos peso para a fama dos atores, para o sucesso de crítica ou bilheteria. Talvez isso permita estarmos um pouco mais advertidos diante das novas ilusões narcísicas trazidas pela linguagem digital.

Nenhum comentário:

Postar um comentário