sexta-feira, 24 de janeiro de 2020

Não tem como dar certo


por Pedro Doria | O Estado de S. Paulo

Nas últimas semanas, assisti a alguns episódios de linchamento virtual no Twitter. Destes, uns particularmente violentos. Assisti ao linchamento de gente de esquerda, gente de direita, gente que nem tem qualquer coisa a ver com política. Não era assim, lá no início do Twitter. Foi ficando. E piorando. É, cada vez mais, a rede social onde se concentram os governantes, então faz parte de nossa conversa pública. Como sociedade, estes episódios indicam que estamos doentes.

Em inglês, uma série de expressões estão se consolidando para tratar deste processo. Cada uma tem significado ligeiramente distinta da outra, mas todas pertencem ao mesmo universo. A mais popular é cancel culture, que já entrou para o vernáculo brasileiro — cultura do cancelamento. Outra, a mais antiga do conjunto, é online shaming. Humilhação pública online. A terceira é call-out culture — numa tentativa de tradução, cultura do denuncismo.

Cancelar alguém na internet é promover um boicote. Em geral se volta contra artistas — trata-se de mobilizar um grupo grande o suficiente de pessoas para que deixem de seguir alguém por algo que tenha feito. No limite, o sucesso de um cancelamento ocorre quando se consegue destruir a carreira do alvo escolhido.

Humilhação pública é intuitivo — junte uma massa de gente para falar mal de alguém ao mesmo tempo. Denuncismo é parecido, só que mais específico. Ocorre quando a pessoa alvo de alguma forma cometeu algum delito de opinião. É a boa e velha patrulha ideológica, só que no ritmo da internet.

Estas ondas não ocorrem só no Twitter. Mas, da forma como o Twitter funciona, ele termina por ser um ambiente particularmente propício a ataques.

Tuítes são curtos, portanto há um limite para a quantidade de explicação que podem carregar. Com o celular na mão, a plataforma convida à impulsividade. Leu algo, quer responder na hora. Para uma mensagem sair torta, mal explicada, com duplo sentido, tudo é fácil de acontecer. A velha gafe da mesa de bar, que era esquecida e ficava restrita a uns poucos, no Twitter vira para sempre. Para não falar que é um ambiente generoso com os ressentidos.

Em parte, o problema é da plataforma. O Twitter não é uma rede para conversas — mas virou uma rede de conversas. Assim, um tuíte torto não pode ser editado para correção. E não adianta responder, explicar o que se quis dizer. Todo mundo vê o tuíte torto, mas quase ninguém vê a explicação embaixo. Além disto, exatamente como ocorre no Facebook, o algoritmo distribui mais aquilo que gera indignação. Ou seja: são os posts problemáticos aqueles que ganham mais visibilidade.

Só que não é só a plataforma. Vivemos um tempo muito moralista. A gente que conheço nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu um enxovalho, todos príncipes na vida — como escreveu, de certa feita, Fernando Pessoa. O moralismo de direita é aquele velho, que espera uma gente que se comporte nos limites do adequado dos anos 1950. O moralismo de esquerda é politicamente correto — há palavras interditadas, roupas, e uma penca de ideias.

Junte-se ao moralismo o tribalismo do tempo. Formamos tribos que têm interesses ou opiniões em comum. E a maneira de construir laços tribais, em geral, está noutra expressão que se tornou cotidiana em inglês. Virtue signaling. A sinalização de virtude. Quando alguém atenta contra os valores morais da tribo, todos precisam se manifestar acusando. Estão, em verdade, dizendo “faço parte deste grupo”, e para seus padrões sou limpinho assim. Para virar dezenas, centenas de milhares batendo numa só pessoa demora um segundo.

Neste mundo de limpinhos, príncipes na vida, o que criamos é uma sociedade de linchadores movidos a ódio. Não tem como dar certo.

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