quinta-feira, 24 de janeiro de 2008

Clonagem de artigos científicos é fenômeno comum, sugere levantamento

Cerca de 200 mil publicações em base de dados de pesquisa médica podem ser cópias.
Autoplágio parece ser muito mais freqüente do que se aproveitar do trabalho alheio.
Um espectro ronda as publicações científicas: a picaretagem. Ou pelo menos a cara-de-pau de usar os mesmíssimos resultados em mais de um artigo científico, como forma de inflar a própria produtividade. A acusação é grave, mas foi bem substanciada pelo trabalho de dois pesquisadores da Universidade do Texas, Mounir Errami e Harold Garner. Após uma análise estatística do Medline, um dos maiores bancos de dados de pesquisas biomédicas do planeta, eles identificaram mais de 200 mil trabalhos potencialmente clonados -- a maioria resultado de um aparente "autoplágio".

Os resultados da investigação da dupla estão -- ironicamente -- num artigo na edição de hoje da revista científica britânica "Nature". Os dois não se limitaram a escrever o trabalho, no entanto: também criaram uma base de dados para as pesquisas suspeitas de clonagem. Batizada apropriadamente de Déjà vu, a base está disponível de graça na internet e deve ajudar a monitorar a cópia e autocópia de resultados científicos daqui para a frente. Somando as duas práticas, a estimativa é que quase 1,5% dos artigos no Medline envolveram alguma forma de plágio.

Apesar de os resultados se referirem ao campo das pesquisas biomédicas, "creio que o que está ali vale para qualquer área da ciência", diz o físico Paulo Roberto Silveira Gomes, da Universidade Federal Fluminense (UFF). Gomes, que comentou o estudo a pedido do G1, é uma das aparentes vítimas num caso recente em que houve acusações de plágio de artigos científicos no Brasil. No caso, que ainda está sendo investigado, a equipe liderada por um físico da USP, Alejandro Szanto de Toledo, teria tanto copiado trechos de artigos alheios quanto "reciclado" pedaços de um trabalho anterior co-escrito pelo próprio Toledo.

Publicar ou perecer
Para Paulo Gomes, a explicação para o fenômeno é uma só: "A pressão por publicar cada vez mais leva ao tipo de coisas mencionadas no artigo da Nature", diz ele. De fato, as últimas décadas transformaram o lema publish or perish (publicar ou perecer) no mantra dos cientistas no mundo todo. Com o aperto das agências financiadoras, cobrando cada vez mais números e resultados, os cientistas se viram diante da necessidade de mostrar serviço -- às vezes, do jeito que desse.

Errami e Garner reconhecem essa pressão como uma das causas do fenômeno, mas vêem dois outros elementos alimentando a clonagem de artigos. Um deles é o aumento do número de revistas científicas que disponibilizam seu conteúdo na internet, o que facilita a cópia de trechos. O outro é o simples aumento do número de publicações científicas como um todo -- um fenômeno aparentemente positivo, mas que abre oportunidades para os caras-de-pau.

A própria metodologia dos pesquisadores americanos, no entanto, pode ajudar a contornar isso. Eles descobriram que, em geral, um artigo clonado aparecia na lista dos "artigos relacionados" do Medline. Assim, para achar possíveis cópias, eles usaram uma amostra de cerca de 7 milhões de artigos, buscando também os trabalhos relacionados. Depois, usaram um programa de computador para comparar os textos em busca de verdadeiros plágios e autoplágios. Por enquanto, por razões de justiça e segurança, só a checagem manual é capaz de confirmar a malandragem dos cientistas.

Quem paga o pato
A clonagem de pesquisas pode parecer relativamente inocente perto da falsificação de dinheiro, por exemplo, mas também causa danos sérios ao interesse público. O primeiro é a mera perda de tempo ou dinheiro: cientistas da mesma área têm de revisar artigos clonados antes da publicação, gastando fôlego com pesquisas que já foram feitas.

No caso dos testes clínicos de medicamentos, porém, vidas humanas podem estar em risco. Isso porque a segurança e a eficácia de um remédio depende, aos olhos dos cientistas e médicos, das vezes seguidas em que aquela substância foi testada e funcionou. Se esse número for artificialmente inflado, todos terão uma imagem errada da ação daquele remédio.

Gomes, apesar de elogiar as sugestões dos americanos para minimizar o problema, aponta que o buraco pode estar ainda mais embaixo. Ele cita um novo procedimento, mais sutil e difícil de desmascarar, para falsear a produtividade científica: "É publicar somente a quantidade mínima de dados ou cálculos para que o artigo seja aceito, e depois publicar mais outra parte, e mais outra... Dessa forma, ao invés de publicar um artigo com grande número de novidades e informações, como em geral ocorria no passado, o autor publica varios artigos", conta. O preço da qualidade, pelo visto, é a eterna vigilância.

Fonte: G1

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