domingo, 3 de fevereiro de 2013

Em Madri, instituto com acervo digital busca formar leitores


Por  Priscila Guilayn, correspondente em Madri | O Globo

Não se pode exigir o silêncio de uma biblioteca da Casa del Lector, definida por quem trabalha em seus dez mil metros quadrados como um espaço vivo no qual o protagonista é seu frequentador, que pensa, lê, vê e escuta, mas também opina, fala. Ou balbucia e dá gritinhos, porque a instituição, inaugurada há dois meses em Madri, está projetada, inclusive, para pré-leitores, ou seja, crianças a partir dos nove meses de idade. 


A falta de silêncio, mas não de tranquilidade, no entanto, está longe de parecer um problema: neste curto período de vida a Casa del Lector recebeu mais de 40 mil visitantes. O sucesso dessa “biblioteca sem livros” — o acervo da casa é apenas digital — deve ser ampliado a partir de abril, quando ela planeja implementar convênios com importantes bibliotecas internacionais. Assim, a Casa del Lector vem desmontando a afirmação de que o povo não se interessa por cultura. Uma falácia, segundo seu diretor, César Antonio Molina. 

— É preciso saber atrair, saber propor — afirma Molina, que foi ministro de Cultura da Espanha entre 2007 e 2009. — Fazemos o casamento da educação com a cultura, e também com a recreação, porque a cultura não é tediosa, pelo contrário. É divertida. 

Sem ignorar as pesquisas sobre os hábitos de leitura dos espanhóis, que constatam o desinteresse de 42% da população pelos livros, a Casa del Lector acredita que com uma boa transição no uso dos suportes — do papel à tela — a relação das pessoas com as letras pode até melhorar. 

— O papel da Casa del Lector é justamente ajudar as diferentes gerações a fazer esta transição e, às novas, mostrar a importância da leitura ao longo dos séculos — diz Molina. 

Investimento em novos suportes 

Os idosos, que costumam ir abandonando a leitura porque o corpo das letras impressas costuma ser pequeno demais para seus olhos, podem ter a solução do problema nos ereaders. As novidades, no entanto, assustam. Nada, porém, que a aprendizagem, o treino, e o hábito não possam remediar, lembra Molina. Deixando a carteira de identidade, o leitor pega emprestado um Kindle com 50 novos títulos, e pode ir devorando os últimos lançamentos editoriais. Além de, pouco a pouco, lembra Molina, criar intimidade com o novo suporte de leitura: 


— Eu digo que a Casa del Lector deve ser o centro cultural da juventude do século XXI, porque ninguém nunca deixa de ser jovem. Nesse sentido somos um centro de proselitismo cultural: ensinamos os jovens a ler, a ouvir, a ser livres, a saber e opinar individualmente, porque defenderão a cultura no futuro; e às pessoas de outras gerações, para que continuem se sentindo jovens, não pensem que já cumpriram seu papel e que só basta esperar a morte. As pessoas mais velhas não podem ficar marginalizadas por esta evolução. 

Na Espanha, a porcentagem de leitores vai reduzindo com a idade: 82,4% entre 14 e 24 anos; 67,7% até 34 anos; 65,7% até 44 anos; 62,8% até 55 anos; 55,7% até 64 anos; e 36,7% até 65 anos, segundo a última pesquisa da Federação de Editores. A Casa del Lector — idealizada pelo editor (fundador do Grupo Anaya) e mecenas Germán Sánchez Ruipérez, que morreu poucos meses antes de sua inauguração — quer contribuir para melhorar este panorama, já que os aposentados são os que têm mais tempo disponível. Um clube de leitura para maiores de 55 anos e outro de filosofia batizado de “O saber não ocupa lugar” são alguns dos estímulos oferecidos. 

— O mundo do papel está no final. Dentro de dez ou vinte anos o papel será reduzido ao mínimo. Digo isso com tristeza. Mas embora a mudança de hábito seja dura e dolorosa, é algo bom — opina Molina. — Somos a única biblioteca no mundo sem livros, acredito eu. Não podemos estar no século XXI fazendo uma biblioteca do século XIX. 

Com a visão no futuro, mas tendo em conta o passado e o presente, esta instituição privada tem promovido mais de 300 atividades culturais por mês, grande parte delas gratuitas: são palestras sobre livros, seminários, mesas redondas, oficinas, cursos, clubes de leitura, mestrados, contação de histórias, peças de teatro, concertos, exposições. 

— Quando falamos de leitor, também nos referimos ao espectador, tanto de obras de arte, como de teatro, de cinema, de música ou de dança. A leitura abrange tudo. Sem o leitor não há obra, porque é ele quem a recria e quem ajuda, junto com o criador, a acabá-la. E também é quem a difunde — ressalta Molina. 


A leitura como um ato coletivo 

Um dos objetivos da Casa del Lector, que funciona dentro do Matadero, efervescente centro de cultura contemporânea da prefeitura madrilenha, que investiu € 27 milhões em sua criação, é a ampliação do conhecimento. 

— Quais livros devem ser lidos, quais filmes devem ser vistos, quais exposições devem ser visitadas, como interpretar uma obra de arte, uma obra literária, uma obra cinematográfica? — indaga Molina. — Ajudamos a formar o leitor, a manter sua formação e a ampliá-la. Assim ajudamos a criar mais leitores de obras literárias e mais espectadores de arte. Estamos formando gente mais humana, mais livre e que, no aspecto profissional, que hoje tanto nos preocupa, terá mais possibilidades de abrir seu caminho em postos mais destacados. 

É um desafio mais que louvável em um país com índices preocupantes de desemprego (26%) e modestos de leitura, embora maiores que no Brasil: 57,9% dos espanhóis leem (livros) espontaneamente, e 20,1%, por exigências do trabalho ou de estudo. Entre os espontâneos, 45,1% são leitores frequentes (pelo menos um livro ao mês), dos quais 28,6% leem todos os dias, e 16,5%, uma ou duas vezes por semana. A média de leitura é de 10,3 livros por ano (no Brasil é de 4). 

— De qualquer forma é preciso diferenciar entre a boa e a má literatura. Considero mais positivo ler um só bom livro ao ano do que ler dez best-sellers de qualidade duvidável — opina o escritor argentino Pablo Nacach, um dos orientadores dos clubes de leitura da Casa del Lector — É preciso não só ler mais, como ler melhor. 

Nesse sentido, os diferentes clubes oferecidos pela Casa del Lector — para adolescentes, adultos e terceira idade — também têm a função, acredita Nacach, de orientar seus participantes no vasto mundo literário. 

— Ler é um ato íntimo, em que o leitor se distrai, se diverte e se aprofunda na vida, mas falar de literatura é tão importante como ler para si mesmo. Por isso considero que ler também é um ato coletivo — observa Nacach.

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