sexta-feira, 15 de agosto de 2014

Um e-reader na vida de um livreiro


Maya sabe o que é antes de terminar de abrir.

Já os viu na escola. Quase todo mundo tem um desses hoje em dia, mas o pai não aprova. Ela desacelera a velocidade do desembrulho e se permite um tempo para pensar em uma reação que não vai ofender nem o pai nem avó.

“Um e-reader! Faz tempo que quero um.” Olha rapidamente para o pai. Ele assente, embora a sobrancelha trema um pouco. “Valeu, vovó.” Maya beija a avó no rosto.

“Obrigada, mamãe Fikry”, diz Amelia, que já tem um e-reader para o serviço, mas mantém a informação sigilosa.

Assim que vê do que se trata, A.J. para de desembrulhar o presente. Se deixar embrulhado, pode repassar para alguém. “Obrigada, mamãe”, diz A.J. e morde a língua.

“A.J., está fazendo um beicinho”, a mãe repara.

“Não estou”, ele nega.

“Precisa acompanhar os novos tempos”, ela continua.

“Por quê? O que tem de tão bom nos novos tempos?” A.J. sempre reflete que, pouco a pouco, todas as coisas boas do mundo estão sendo trinchadas do mundo, como gordura da carne. Primeiro, foram as lojas de discos, depois as locadoras, e depois os jornais e revistas, e agora mesmo as grandes redes de livrarias estavam desaparecendo a olhos vistos. De acordo com ele, a única coisa pior que uma grande rede de livraria era um mundo SEM grandes redes de livrarias. Pelo menos as lojas grandes vendem livros e não remédios ou lenha! Pelo menos algumas pessoas que trabalham nessas lojas são formadas em literatura ou sabem como ler e fazer a curadoria de livros para os outros! Pelo menos as grandes vendem 10 mil unidades do lixo das editoras para que a Island consiga vender cem unidades de ficção literária!

“O caminho mais rápido para envelhecer é ficar para trás na tecnologia, A.J.” Depois de vinte e cinco anos trabalhando com computadores, a mãe acabou com uma aposentadoria respeitável e essa única opinião, pensa A.J., sem piedade.

A.J. respira fundo, dá um longo gole de água, outra inspiração. Seu cérebro parece apertado dentro do crânio. A mãe raramente o visita, não quer estragar o tempo juntos.

“Pai, você tá ficando meio vermelho”, diz Maya.

“A.J., você está bem?”, a mãe pergunta.

Ele coloca o punho sobre a mesa de centro. “Mãe, você entende que esse aparelho infernal vai destruir meu negócio sozinho e, pior, enviar séculos de cultura literária vibrante para o que certamente será seu declínio rápido e rasteiro?”

“Está sendo dramático”, diz Amelia. “Fica calmo.”

“Por que eu devo me acalmar? Eu não gostei do presente. Eu não gosto dessa coisa e com certeza não gosto de três dessa coisa na minha casa. Preferia que tivesse comprado algo menos destrutivo pra minha filha, tipo um cachimbo de crack.”

Maya dá uma risadinha.

A mãe de A.J. parece estar prestes a chorar. “Bem, eu não queria deixar ninguém chateado.”

“Está tudo bem”, diz Amelia. “É um lindo presente. Nós amamos ler, e tenho certeza de que vamos aproveitar muito. Além disso, o A.J. está sendo dramático.”

“Desculpa, A.J.”, diz sua mãe. “Não sabia que se importava tanto com o assunto.”

“Podia ter perguntado!”

“Fica quieto, A.J. Para de se desculpar, mamãe Fikry”, diz Amelia. “É o presente perfeito para uma família de leitores. Muitas livrarias estão descobrindo maneiras de vender e-books junto com livros convencionais de papel. A.J. só não quer…”

A.J. interrompe: “Sabe que é isso lorota, Amy!”.

“Está sendo muito grosso”, diz Amelia. “Não pode enfiar a cabeça na areia e fingir que e-readers não existem. Não pode lidar com as coisas desse jeito.”


...


Mais tarde, na cama, A.J. ainda está falando sobre e-reader. “Sabe qual é, de verdade, o problema com os e-readers?”

“Acho que você vai me contar agora”, Amelia fala sem tirar os olhos do seu livro de papel.

“Todo mundo pensa que tem bom gosto, mas a maioria das pessoas não tem bom gosto. Na verdade, eu diria que a maioria das pessoas tem péssimo gosto. A sós com esses aparelhos, literariamente falando, leem porcarias sem nem saber a diferença.”

“Sabe o que é bom nesses aparelhos?”, pergunta Amelia.

“Não, Pollyanna”, diz A.J. “E não quero saber.”

...


Trecho do livro A Vida do Livreiro A. J. Fikry, de Gabrielle Zevin

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