quarta-feira, 26 de setembro de 2018

O acervo digital com publicações das colônias portuguesas

Projeto mantido por Universidade de Aveiro, em Portugal, reúne publicações e documentos das antigas colônias do país europeu em defesa da memória da lusofonia


Murilo Roncolato | Nexo

Em um livro de mil novecentos e tantos (não se sabe ao certo), o lusitano Luis Silveira escreveu que, “ao contrário dos Espanhóis”, na América não havia “povoações organizadas”. “As cidades do Brasil foram, pois, não só construídas de raiz, como livres de contaminação de exemplos locais”, disse em bom português. 

No entanto, com o tempo, o modelo urbano europeu sofreu alterações, com poucas exceções. “A Baía [Salvador], por exemplo, que foi cronològicamente e em importância a primeira cidade brasileira, é ainda, em perfil panorâmico, muito portuguesa.” 

O relato de além-mar está presente em “Ensaio de Iconografia das Cidades Portuguesas do Ultramar”, uma das diversas obras digitalizadas e acessíveis no site do Portal das Memórias de África e do OrienteO projeto, em atividade desde 1997, é mantido pelas universidades portuguesas de Aveiro e Lisboa e financiado pela Fundação Portugal-África. 

O projeto se define como um “instrumento fundamental e pioneiro na tentativa de potenciar a memória histórica dos laços que unem Portugal e a Lusofonia, sendo deste modo uma ponte com o nosso passado comum na construção de uma identidade coletiva aos povos de todos esses países”. 

Assim, o acervo reúne mais de 2,5 mil documentos históricos, frutos da relação entre Portugal e suas antigas colônias, como Cabo Verde, Guiné-Bissau, Macau (na China), Moçambique, São Tomé e Príncipe, além de Goa, Damão e Diu (Índia). 

Sobre Angola, país que se tornou independente apenas em 1975, e Brasil, o projeto diz ser “objetivo (...) incorporar também registros bibliográficos” de instituições desses países, mas “não foi possível até o momento, e apesar de várias tentativas, identificar” uma que “coordene o processo de identificação de acervos”.  

Em meio à papelada virtual, é possível encontrar diários oficiais de presidentes portugueses em visitas às colônias e até um conjunto de materiais didáticos usado para o ensino da língua portuguesa – como este abaixo, usado na alfabetização em Angola, datado de 1966, nove anos antes da independência do país africano.

FOTO: REPRODUÇÃO/UNIVERSIDADE DE AVEIRO

MATERIAL DIDÁTICO DISTRIBUÍDO EM ANGOLA EM 1966, ANTES DA SUA INDEPENDÊNCIA 

Álbuns da colônia de Moçambique 

O acervo destaca coleções como o catálogo de “Álbuns Fotográficos e Descritivos da Colónia de Moçambique”, de 1929, uma coleção de 10 álbuns que mostram “vários aspectos da ‘Colónia de Moçambique’” em texto e imagem, diz o site. 

Moçambique, independente de Portugal desde 1975, é descrito como sendo um “distrito riquíssimo em florestas das mais variadas espécies, próprias para indústrias” e dono de um “belo clima”. “Os melhores pontos para a colonisação europêa [grafia original]”, afirma um dos álbuns oficiais. 

O material é rico seja pelo seu valor histórico, por retratar a infraestrutura local, a arquitetura das cidades, as práticas cotidianas da população local e sua cultura, seja pelo fato de tudo isso ser reportado do ponto de vista do colonizador português. 

Em um dos álbuns sobre “Raças, Usos e Costumes Indígenas”, há retratos de pretensão etnográfica sobre os diferentes “tipos de creados da capital da Colónia”, como o “pápo-sêco” com “áres de civilisádo”; o “mufano”, cuja atividade é servir chá; há registros de casamentos e ou ainda de “curandeiros”, dos quais “indígenas já pouco acreditam e que as autoridades perséguem”. 

De São Tomé e Príncipe 

Sobre a ilha do Atlântico há um “enorme acervo” digitalizado desde 2006. Há sobre o país e sua população fotografias sobre as cidades no início do século 20, seus “grupos culturais” e das suas antigas “roças” ou fazendas. Nesta imagem, o retrato da senzala, onde moravam os “serviçais” das roças, feito em 1911.  

FOTO: REPRODUÇÃO/UNIVERSIDADE DE AVEIRO
‘SENZALAS (HABITAÇÕES DOS SERVIÇAES) NA ROÇA GUEGUÉ - S.THOMÉ’ 

Cadernos coloniais 

O acervo conta ainda com os chamados “Cadernos Coloniais”, uma coleção com 70 livros publicados por uma antiga editora de Lisboa entre 1920 e 1960. “Os temas versados abrangeram as diversas colônias que na altura formavam o Império Português e os grandes obreiros dessa obra colonizadora”, descreve o site do projeto. 

Há exemplares que tratam, em texto e imagem, sobre a “África desconhecida” e outro, dedicado a contar histórias do folclore das populações locais, intitulado “Lendas negras”. 

FOTO: REPRODUÇÃO/UNIVERSIDADE DE AVEIRO

‘CASTRO SOROMENHO, OUVINDO NA LUNDA AS CURIOSAS LENDAS DO GENTIO’, NA EDIÇÃO SOBRE ‘LENDAS NEGRAS’ DOS CADERNOS COLONIAIS

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