sexta-feira, 10 de setembro de 2010

Das estantes para o computador: A digitalização de grandes bibliotecas levanta discussão sobre o acesso à leitura, os custos e os direitos autorais

Camila Viegas-Lee - Revista Língua Portuguesa

Quem está acostumado ao ambiente austero e silencioso de bibliotecas mundo afora ficaria surpreso com a algazarra formada em frente ao tribunal federal de Nova York na fria quinta-feira de 18 de fevereiro deste ano. O juiz Denny Chin passou quatro horas numa sala lotada colhendo testemunhos de bibliotecários, autores e editores e anunciou que não decidiria o caso na hora porque havia "simplesmente muita informação para digerir". O processo? A biblioteca on-line do Google.

Esse é um novo capítulo da controversa decisão de outubro de 2008 que autorizou o Google a escanear livros de bibliotecas famosas, como a de Harvard e a do Congresso americano, e torná-los acessíveis na internet para busca e leitura parcial. O Google, por sua vez, deve criar novas formas para compensar autores e editoras, inclusive por edições digitais de obras que saíram de circulação. A empresa já escaneou milhões de livros, e uma busca por Machado de Assis, por exemplo, mostra mais do que três mil volumes no Google Books.

Os partidários da decisão - como a Universidade de Michigan, a Sony e a Federação Nacional dos Cegos - dizem que o acordo tornará milhões de livros de difícil acesso disponíveis a uma vasta audiência e estimula "o desenvolvimento de uma cultura próspera e vibrante".

A oposição - formada pelas rivais Amazon.com e Microsoft e por representantes de autores, herdeiros e agentes literários - diz estar preocupada com monopólio, privacidade, abuso do sistema judiciário e violação de direitos autorais. Em entrevista para o jornal New York Times, William Cavanaugh, advogado sênior do Departamento de Justiça, diz que "aplaude os benefícios da digitalização em massa", mas que a biblioteca do Google talvez "não seja o veículo apropriado para atingir esses objetivos".

O Conselho de Recursos de Informação e Bibliotecas (Clir, na sigla em inglês), uma organização baseada em Washington cujo objetivo é promover novas abordagens para gerenciamento da informação digital, vai publicar até o fim deste ano três estudos que examinam questões chave da transição do ambiente analógico para o digital. Um desses estudos, A Nova Biblioteca para Pesquisas Pode Ser Toda Digital? de Geneva Henry e Lisa Spiro, analisa bibliotecas americanas já existentes e a aplicação das novas tecnologias.

Questões
Lisa Spiro, que também é diretora do Centro de Mídia Digital da Universidade Rice, aponta para questões sociais, culturais, técnicas, econômicas e políticas. Segundo a especialista, pesquisadores da área de humanas, por exemplo, sentem falta de procurar livros em prateleiras porque só assim podem encontrar outras obras relevantes por acaso. Pesquisadores de ciências, por sua vez, não reclamam do mesmo problema. Eles normalmente recorrem a periódicos em vez de monografias e é mais importante ter acesso rápido e preciso à informação.

Está claro que a nova geração de pesquisadores prefere a facilidade do acesso da informação eletrônica. Em 2006, o Google fez uma experiência e postou 101 filmes do Arquivo Nacional americano - inclusive noticiários da Segunda Guerra Mundial e imagens da NASA. Até então, o Arquivo recebia uma média de 200 solicitações por ano para assistir esses filmes em suas salas de pesquisa. No primeiro mês em que o material ficou disponível no site do Google, os filmes foram assistidos mais de 200 mil vezes.

Recursos
Esse é um dos paradoxos da era digital. Se por um lado a explosão da internet tornou a informação mais acessível e disseminada do que nunca, essa mesma onipresença ameaça o registro daquilo que não consegue ser digitalizado por causa do custo ou porque será cada vez mais rara a visitação de arquivos in loco.

Na Biblioteca do Congresso americano, por exemplo, apesar de esforços ambiciosos de digitalização, apenas 10% dos 132 milhões de objetos migrarão para a plataforma eletrônica por causa da questão financeira. Escanear e postar objetos pequenos em slides de 35 mm custa de US$ 6 a US$ 9, ou de US$ 7 a US$ 11 para cada página de documentos presidenciais, e de US$ 12 a US$ 25 para pôsteres.

É por isso que arquivistas americanos procuram parceiros na iniciativa privada. O Google doou US$ 3 milhões e está fornecendo recursos tecnológicos para digitalizar vários materiais impressos da Biblioteca do Congresso. Além disso, a empresa está digitalizando sozinha os livros da sua famosa coleção. Outras empresas e fundações como a IBM, a Reuters e a Fundação Andrew W. Mellon também têm financiado iniciativas ao redor do mundo como o arquivo da biblioteca do Vaticano e imagens da Cidade Proibida de Pequim.

Por outro lado, depois que um volume é digitalizado, os gastos com a manutenção, limpeza, mão de obra, circulação e eletricidade para o controle de temperatura e umidade caem vertiginosamente. Sobre o Custo para Manter um Livro - outro estudo publicado pelo Clir - diz que "quando é legal e funcionalmente possível fazer a transição para o armazenamento eletrônico e o uso de cópias para uso corrente de materiais acadêmicos, há um enorme ganho econômico."

O estudo indica que, em média, a manutenção de um livro numa biblioteca pública custa US$ 4,26 por ano. A manutenção do mesmo livro eletrônico custa US$ 0,15 de acordo com o depósito de mídia digital Hathi Trust, que mantém cerca de cinco milhões de cópias. Para obras coloridas o custo aumenta para US$ 0,40.

Direitos autorais
Entre as implicações políticas da digitalização está o risco de violação de direitos autorais. As leis de direito autoral ainda não conseguiram regulamentar a confusão causada pelas tecnologias de reprodução, tornando-se um grande desestímulo para o gerenciamento digital.

Copiar e colar textos de leitores digitais ainda é proibido e há limitações sobre quantas páginas podem ser impressas. A reprodução de documentos centenários não se constitui um problema, mas as restrições das leis do direito autoral têm um papel importante nas obras modernas.

No Brasil, a lei de direitos autorais, que regula não só os direitos de autor, mas também os direitos conexos, como os direitos de intérpretes, de produtores fonográficos e das empresas de radiodifusão, apesar de não ser muito antiga (é de 1998), traz problemas sérios com relação à reprodução de textos e à possibilidade de digitalização.

- A alteração da Lei de Direitos Autorais, cujo projeto já foi anunciado pelo Ministério da Cultura, virá em boa hora, para esclarecer, entre outros, dois aspectos: o da reprodução de obras para fins educacionais, hoje limitada a "pequenos trechos" que a lei não define, e a digitalização de obras ainda protegidas por direitos de autor, que depende expressamente de autorização do detentor dos direitos patrimoniais da obra - afirma a ex-presidente da Associação Brasileira de Propriedade Intelectual, Juliana L. B. Viegas.

Uma das conclusões gerais do estudo de Henry e Spiro é que a academia americana, incluindo pesquisadores de humanas e de ciências, não está preparada para uma biblioteca de pesquisa estritamente virtual.

Híbrido
Para Lisa Spiro, o ideal é um híbrido entre análogo e digital. Novos volumes ficariam disponíveis por um par de décadas e depois seriam transportados para armazéns de "maior densidade", consultável por solicitação. Seu sucesso estaria atrelado ao tamanho e ao escopo da coleção, ao modelo de serviço e ao modelo econômico.
- Dependendo do que o pesquisador esteja procurando, se é uma citação rápida ou a contextualização de uma ideia, deve preferir a facilidade da busca on-line ou o relacionamento direto com a coleção impressa - afirma Lisa.

A especialista suspeita que, aos poucos, a humanidade esteja caminhando para os meios eletrônicos mudarem a maneira como se entendem as publicações.
- Diretores de bibliotecas respondem não apenas aos professores, mas também aos administradores das faculdades. São esses administradores que fornecem o orçamento das bibliotecas e eles podem começar a resistir ao financiamento de novos espaços para guardar coleções impressas. Os diretores devem considerar não apenas a expectativa imediata dos professores, mas também os objetivos de longo prazo de suas bibliotecas - diz Lisa.

Um comitê de pesquisa da Universidade Stanford determinou que levará 50 anos, ou duas gerações de professores, para que o meio eletrônico seja completamente inserido da prática da pesquisa acadêmica. A Universidade de Chicago acaba de inaugurar uma biblioteca híbrida, e a Universidade Drexel e a do Estado da Califórnia já assinam mais periódicos eletrônicos do que impressos. Isso chama a atenção da comunidade acadêmica e certamente pode influenciar outras bibliotecas.

A própria especialista, que enfrenta diariamente os desafios da produção de uma biblioteca digital para a Universidade Rice, reconhece as vantagens da tecnologia para a comunidade acadêmica, e tenta permanecer neutra, aberta a novos padrões de tecnologia.

Só o tempo dirá como a cultura da leitura digital será recebida pela comunidade acadêmica e usuários de bibliotecas em geral. Até lá, é preciso estar alerta aos desdobramentos éticos e comerciais desse novo modelo, que se apresenta como um desafio a toda uma geração de leitores. (da revista Ensino Superior)


O bibliófilo José Mindlin: acervo doado para a USP pode virar referência de digitação

Por uma política digitalizada
A falta de definição para os critérios de digitalização de acervos no país atravanca o processo
Luis Guidi

No Brasil, a digitalização de acervos universitários e públicos em grande escala ainda depende de regras claras do governo federal: que obras podem ser digitalizadas, para qual finalidade, tecnologias disponíveis, qual o tamanho máximo dos arquivos, quais serão os repositórios digitais, linhas de financiamento e, sem dúvida, uma revisão na lei de direito autoral para esse fim. Os recursos existem e parece que o Ministério da Cultura está disposto a investir na digitalização de acervos, mas ainda não se tem uma política pública para o país.

Existe hoje uma infinidade de obras raras ou esgotadas inacessíveis ao público. O caráter raro de uma obra pode fazer com que a primeira edição de O Capital, de Karl Marx, ou Visão do Paraíso, de Sérgio Buarque de Holanda, seja encontrada num sebo por até R$ 600. Influenciada por um movimento mundial, a digitalização de bibliotecas já começa a ser vista no Brasil como um mercado a ser explorado e uma ferramenta de difusão cultural, pesquisa e formação, além da conservação e preservação de acervos. Infelizmente, por enquanto, quase todos os projetos nacionais de bibliotecas digitais universitárias funcionam mais como um banco de teses, dissertações e trabalhos acadêmicos.

Doação
Em 2006, o bibliófilo José Mindlin, falecido em fevereiro de 2010, e sua esposa Guita doaram para a USP uma coleção de 40 mil livros e documentos sobre a história do Brasil, o maior acervo de livros particulares do país. Enquanto um edifício na Cidade Universitária da USP é erguido para abrigar e preservar a vasta coleção, o projeto pode se tornar referência tecnológica e parâmetro para a digitalização de acervos no Brasil. A Brasiliana Digital da USP vai colocar na internet, de graça, todo o acervo de Guita e José Mindlin.

O sucesso do projeto Brasiliana Digital parece certo. A execução de cada etapa está sendo seguida como o planejamento encomendado e a evolução é notória quando analisadas os progressos em hardware, tecnologias de digitalização e padrões de imagem. Segundo o coordenador do projeto, Pedro Puntoni, a ideia para o ano que vem é ministrar cursos de como fazer uma biblioteca digital na qual as pessoas terão acesso ao modelo do projeto, já que todos os softwares usados são livres e os códigos são abertos.

Puntoni acredita tratar-se de um movimento mundial, que poderá impulsionar a venda de livros na medida em que o primeiro acesso à obra, via internet, seja de graça.

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