terça-feira, 6 de agosto de 2019

Bem-vindos à era da transcendência digital


Marcelo Gleiser, trecho do livro "O Caldeirão Azul", (Record, 2019)
Imagem: Internet

Tenho idade suficiente para me lembrar dos antigos telefones rotatórios, aqueles que a gente tinha que colocar o dedo no número para "discar".

Imagino que a maioria das crianças de hoje não saberia o que fazer com um deles. Já meus avós, se pudesse trazê-los de volta à vida, não teriam a menor ideia do que fazer com um telefone celular.

Ao mudar como vivemos nossas vidas, a tecnologia também nos muda, irreversivelmente.

Continuando com o telefone como ilustração, uma transformação profunda ocorreu na sociedade nos últimos 40 anos, mais ou menos o período da transição entre os telefones rotatórios e os celulares. No caso dos rotatórios, a família dividia um único número, o número da sua casa. Raramente, famílias tinham mais de um número na mesma casa. Se alguém estivesse usando o telefone, você tinha que esperar a vez. A linha estava ocupada.

Já os celulares são aparelhos pessoais. O telefone é seu. E ao contrário de uma caneta ou até um carro, a verdade é que ninguém gosta muito de dividir o celular com outro. As pessoas não gostam nem que outros olhem o seu, imagine usá-lo.

Por que isso?

A resposta mais imediata é que o celular não é meramente um aparelho que você usa para se comunicar com outros ou para se conectar com a internet. O celular é uma extensão digital de quem você é. Ele faz parte da sua pessoa. Você e a máquina são um.

Não acredita? Imagine que, em uma reunião no trabalho ou com amigos, você compare os celulares de todo mundo. (Se deixarem, claro.)

Esqueça os modelos que cada um escolhe; isso depende de muitos fatores, como quando decidimos que carro comprar, qual a cor etc. Foque sua atenção nos aplicativos de cada um. Certamente, muitos serão iguais: correio, alarme, câmera, Twitter, WhatsApp... Mas cada celular terá uma coleção de aplicativos única, que é só sua.

Essa coleção individual de aplicativos é uma espécie de impressão digital do dono do celular. Mesmo se considerarmos que, estatisticamente, é possível imaginar dois celulares com o mesmo grupo de aplicativos, imagino que a probabilidade de isso ocorrer seja bem baixa, mesmo dentre pessoas próximas ou da mesma família.

É por isso que, como escrevi acima, o celular é uma extensão digital da sua pessoa. Através dos aplicativos, o instrumento permite que você seja mais você, amplificando o seu senso de quem você é, o seu alcance no mundo. Ele estende sua presença muito além do seu corpo, permitindo que você esteja, virtualmente, em qualquer lugar do mundo, participando de conversas com pessoas em outras cidades, países, ou pertencendo a culturas muito diferentes da sua.

O celular dissolve a essência de quem você é num código digital transportável através do mundo. Juntando a isso o acesso à informação, a verdade é que nunca estivemos mais próximos da onipresença e da onisciência. O celular faz isso, ao menos metaforicamente, nos aproximando de uma existência divina: sem um corpo e cientes de tudo o que ocorre no mundo.

O que explica por que os celulares são tão sedutores. Se não temos um, ou porque esquecemos o nosso em casa ou porque quebrou, nos sentimos confinados a uma espécie de solitária digital, separados de parte de quem somos e do resto do mundo. São poucas as pessoas que, hoje, optam por não ter um. O homo não-digitalis é uma espécie em extinção acelerada!

Bem-vindos à era da transcendência digital.

Esse processo é irreversível. Não temos como voltar atrás. Podemos tentar monitorar o uso, e até desligar o aparelho de vez em quando. Mas difícil acreditar que a maioria das pessoas seja capaz de colocar o seu na gaveta, ou se recusar a usá-lo por períodos longos (dias, por exemplo). A menos que seja uma espécie de desafio pessoal, ou uma viagem de auto(rre)descoberta, como as pessoas que passam uma semana num retiro budista em meditação intensiva.

Com os celulares, expandimos nossa presença no mundo, ampliando nossos horizontes sociais e culturais. Nas mídias sociais, podemos expandir nossas tribos, estabelecendo contato com pessoas que dividem nossos valores, mesmo se vivendo em algum outro canto do mundo.

Mais dramaticamente, os celulares permitem que nossas vidas sejam transferidas para o éter digital, baixáveis em qualquer lugar do mundo, por quem quer que seja. Eles permitem que sejamos admirados, até mesmo endeusados, por outras pessoas. Ou, claro, odiados e invejados. A transcendência digital e o narcisismo estão intimamente ligados.

Acho que poucos estavam preparados para isso. O lado bom dessa tecnologia, que nos permite estar mais próximos dos amigos e da família, ou dividir momentos importantes ou informações relevantes, é indiscutível. Mas existem problemas sérios também.

Por exemplo, como evitar o narcisismo digital? Todas essas fotos, milhares delas, divididas em Instagram e Facebook; todos esses detalhes das nossas vidas, a maioria irrelevantes, agora disponíveis na nuvem, acessíveis a todos. O tempo investido –nas fotos, na sua edição, na sua disseminação, na contagem dos "likes"– parece um ritual do Eu, milhões de pessoas disputando o tempo de milhões, clamando pela atenção dos outros. E o que parece estar acontecendo é o efeito inverso, as pessoas se sentindo cada vez mais sozinhas, apesar de toda essa comunicação.

O tempo passa tão rápido que queremos nossas vidas registradas na memória, mesmo se em um eu virtual. Afinal, se só morremos quando as pessoas se esquecem de nós, na nuvem digital podemos viver para sempre. Você já visitou o portal ou página de Facebook de alguém que morreu?

Os que não querem participar da nova era se sentem pressionados, náufragos de um mundo do passado, que afundou. Quem não participar, perde. É esquecido.

Como toda outra tecnologia com profundo poder transformador, não há como escapar. E não temos por que. Os celulares e a mídia social são uma extensão digital de quem somos, amplificando o que temos de bom e de ruim, redirecionando nossa existência a uma dimensão virtual.

Espero apenas que essa festa do Eu não acabe por criar uma apatia social, as pessoas, com cada vez menos tempo, ficando cansadas dos detalhes dos outros, perdendo o interesse em se comunicar e trocar experiências e informação. Mas acho pouco provável.

A aliança entre as forças de mercado que promovem sem trégua essa revolução da transcendência digital com nosso apetite pelo que é belo, estranho ou violento, vão nos manter flutuando na nuvem virtual para sempre, tentando, como sempre fizemos, entender quem somos e qual o sentido de nossas vidas.

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